1 de março de 2012

...Pena, Pein, Strafe...Phármakon

1.-A pena delimita o horizonte cognoscitivo do direito penal. Como nota, recorde-se que a expressão direito criminal diz respeito à teoria da infracção criminal, um prius lógico. Com direito penal, a manga é maior e abrange a pena, e esta pressupõe a existência de um crime. Direito penal vai além do direito criminal seja em comprimento seja em altura (seja no território do saber, seja no mar do sentir).

2.-Pena vem de “Poena”, e “poné” em grego significa vingança. Esse sentido, alterou-se no tempo. Assim, vemos “pain” em inglês como dor ou castigo (passivo/activo). Na “Constitutio Criminalis Carolina” e no “Tratado” de Feuerbach (séc. XVIII, hoje Alemanha) vemos a expressão “peinliches Recht” e nos últimos cento e cinquenta anos vemos a expressão “Strafrecht” (Strafe, pena, Recht, direito), abandonando-se a expressão “Pein”.

3.-A “Strafe” existia já no séc. XIII, e correspondia à pena pública, ponderada e justa.

4.-No sânscrito o verbo “pet-“ significa “voar”, e também “caír”. Nos momentos de crise, na Grécia “pharmakos” eram as vítimas sacrificadas (“que caíam”) nos momentos de crise para a absorção da impureza geral; “phármakon” é uma palavra ambivalente por redor de “veneno” e “antídoto”.

5.- Todo o saber é particular. Nas sandálias da linguagem e do tempo podemos extrair uma interpretação, um sentido…parcial, …e assim provisório.

15 de fevereiro de 2012

Crime de falsidade de testemunho

DOUTRINA: cfr. “Inverdades e consequências: considerações em favor de uma concepção subjectiva da falsidade de testemunho. | Anotação aos acórdãos da Relação do Porto de 30-01-2008 e da Relação de Guimarães de 29-06-2009” - Nuno Brandão, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 20 nº 3, Julho-Setembro de 2010

JURISPRUDÊNCIA (acórdão TRE de 7-2-2012)
Posto isto, a questão em discussão nestes autos consiste em saber se, prestando uma testemunha duas declarações contraditórias entre si, em duas distintas fases do processo, não se apurando em qual delas mentiu, deve ainda assim ser condenado pela prática do crime de falsidade de testemunho ou, pelo contrário, deve ser absolvido.
Diz o recorrente (conclusão 15ª) que “não se encontra fixada a verdade objectiva e, sem se saber qual é essa verdade, não se pode afirmar a falsidade do depoimento do recorrente, prestado na qualidade de testemunha, num ou noutro momento”.
Trata-se de entendimento com algum acolhimento jurisprudencial, mesmo neste Tribunal da Relação de Évora [2]. Do qual, contudo, discordamos, sempre ressalvado o devido respeito.
Nos termos do disposto no artº 360º, nº 1 do Cod. Penal “quem, como testemunha (…) perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento (…) prestar depoimento (…) falso(s), é punido com pena de prisão de seis meses a três anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias”. O recorrente prestou, em sede de inquérito e em sede de julgamento, dois depoimentos contraditórios entre si: no primeiro afirmou saber que a droga vendida por um tal “Paulinho” era do “Bombas”, que vendia 15 pacotes por dia e que entregava ao “Bombas” 100 ou 110 euros, ficando com o resto para consumo próprio; no segundo afirmou não saber de quem era a droga vendida pelo tal Paulinho e que apenas por uma vez viu o Bombas entregar-lhe 5 pacote de heroína, não sabendo para que efeito. São, como é evidente, dois depoimentos contraditórios entre si. E aqui, uma de duas: ou ambos os depoimentos são falsos ou, pelo menos, um deles é falso. O que é manifestamente impossível, mesmo com recurso à melhor retórica, é afirmar que um depoimento é verdadeiro e o seu contrário também. Ora, elemento típico do crime de falsidade de testemunho é que alguém, numa das qualidades enunciadas no artº 360º, nº 1 do Cod. Penal, preste depoimento, apresente relatório, dê informações ou faça traduções falsos. Dúvidas não podem, pois, restar sobre a verificação desse elemento típico: no âmbito do processo de onde foi extraída a certidão que está na origem destes autos, o arguido prestou falso depoimento: ou em 25/9/2008, quando foi ouvido em sede de inquérito, ou em 12/5/2009, quando foi ouvido em sede de julgamento (ou, eventualmente, em ambas as ocasiões…). Saber em que momento processual foi produzido o falso testemunho é algo de absolutamente irrelevante, a não ser para efeitos prescricionais (que, no caso, atento o prazo de prescrição do procedimento criminal e as datas em que foram produzidas as declarações, é questão que não se coloca) [3]. Subscrevemos, por isso, sem qualquer hesitação, as considerações contidas no Ac. RP de 22/11/2006 (rel. Isabel Pais Martins), www.dgsi.pt: “A não fixação da data de consumação do crime não impõe nem a absolvição da recorrente, por apelo ao princípio in dubio pro reo, nem traduz uma qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, no sentido de tornar impossível um juízo seguro de condenação. O juízo seguro de condenação decorre da prova de que o recorrente, sujeito a um dever processual de verdade e de completude, prestou, em dois momentos processuais, depoimentos divergentes sobre a mesma realidade. O facto de o tribunal não ter logrado apurar a verdade objectiva, conhecida do recorrente (e, daí, não ter conseguido determinar em que momento foi cometida a falsidade) não prejudica uma convicção de certeza sobre a acção típica. A certeza sobre a data de consumação do crime não é um requisito indispensável ao preenchimento do tipo-de-ilícito. A incerteza sobre a data de consumação do crime só poderá relevar para certos efeitos jurídicos, v.g., de consideração de uma eventual prescrição do procedimento criminal ou de aplicação de uma hipotética lei de amnistia, devendo, para esses efeitos, a incerteza sobre a data de consumação sempre ser valorada a favor do recorrente, pela aceitação daquela que lhe seja mais favorável”. E neste mesmo sentido se pronunciaram, entre outros, os Acs. RP de 21/2/2007 (rel. Cravo Roxo) e de 30/1/2008 (rel. José Carreto), bem como os Acs. RC de 18/5/2011 (rel. Jorge Jacob) e de 28/9/2011 (rel. Paulo Guerra), todos in www.dgsi.pt.
A terminar: Não obstante opinião em contrário expressa no Ac. RP de 21/2/2007 supra referido, é nosso entendimento que vindo o arguido acusado pela prática do crime de falsidade de testemunho agravado (nº 3 do artº 360º do CP) e acabando condenado pela prática do mesmo crime na sua forma simples (nº 1 do mesmo preceito), precisamente por se não ter provado a circunstância agravativa (prática do facto após prestação de juramento), não havia qualquer necessidade de, no caso, dar cumprimento ao estatuído no nº 3 do artº 358º do CPP (contrariamente ao que afirma o recorrente na sua motivação de recurso, se bem que o não reafirme nas suas conclusões). É que, como bem se acentua no Ac. STJ de 7/11/2002 (rel. Simas Santos), www.dgsi.pt, “resulta da jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça e da Doutrina (…), se a alteração resulta da imputação de um crime simples, ou «menos agravado», quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime, mas em forma mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravativo inicialmente imputado, não há qualquer alteração relevante para este efeito, pois que o arguido se defendeu em relação a todos os factos, embora venha a ser condenado por diferente crime (mas consumido pela acusação ou pronúncia). Ou seja, o arguido defendeu-se em relação a todos elementos de facto e normativos que lhe eram imputados em julgamento, pelo que nada havia a notificar, toda a vez que se verificou não uma adição de elementos, mas uma subtracção» [4].
Évora, 7 de Fevereiro de 2012 (processado e revisto pelo relator)
Sénio Manuel dos Reis Alves

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[1] Obviamente, sem prejuízo das questões que oficiosamente importa conhecer, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do STJ, de 19/10/1995, DR 1ª Série, de 28/12/1995).

[2] Cfr. os Acs. RE de 15/4/2008, de 3/6/2008 e de 8/4/2010; no mesmo sentido, cfr. Ac. RG de 29/6/2009, RP de 5/7/2006 e de 14/9/2011, todos in www.dgsi.pt.

[3] Outra situação em que, eventualmente, a determinação do momento em que é produzido o falso testemunho assume relevância ocorre quando a primeira declaração é produzida num momento em que a conduta em causa não era penalmente sancionada e já o é no momento em que é produzida a segunda declaração. É questão que igualmente se não coloca nestes autos. Numa e noutra situação, porém, sempre seria, nesses casos, de considerar a data que melhor protegesse os interesses do arguido, na contemplação de um princípio geral de in dubio pro reo que se não resuma à fixação da matéria provada e não provada.

[4] No mesmo sentido, cfr. Ac. RC de 14/9/2011 (rel. Paulo Guerra), www.dgsi.pt. “

28 de novembro de 2011

A Sentença Oral: desnecessidade de transcrição em caso de recurso

1.      No processo especial sumário a sentença oralmente declarada teria de ser transcrita em caso de recurso? A jurisprudência e alguma doutrina responderam que sim (consultar local virtual www.dgsi.pt e o local virtual do Tribunal da Relação de Guimarães).
2.      Não há norma expressa sobre tal questão.
3.      No nosso entendimento, parece-nos que a sentença oralmente prestada, estaria documentada por referência ao disposto no art. 363 do C.P.P.. Sendo um acto de importância fundamental e sendo oral insere-se nos segmentos textuais “Declarações orais” e “outras…à boa decisão da causa” para efeitos do art. 363 e art. 412 nº 6 do C.P.P.. Assim, deve ser tão só ouvida no Tribunal da Relação.
4.      Como se sabe, no processo comum, se as exposições introdutórias ou o requerimento do sujeito processual x não são declarações orais para efeitos do art. 363 do C.P.P., já a leitura de sentença não o é porque escrita (“elaboração”, art. 373). Neste caso, estamos perante uma sentença oral.
5.      No caso do processo especial sumário, a lei ao dizer expressamente a sua exteriorização oral necessariamente quis que a mesma fosse documentada, normalmente gravada. E daí ser dever fornecer a gravação, cfr. art. 389-A nº 4 do C.P.P., Não descortinamos razão objectiva para o Tribunal da Relação não a ouvir tão só.
6.      Note-se a sentença não é ditada, é oral, é um discurso oral, são declarações orais.
7.      Como se sabe a linguagem oral é fonte de uma diferente temporalidade e substância. É natural a interrupção, é natural o voltar atrás no discurso…mas tal é um risco quando assim se decidiu positivamente.
8.      Um exemplo prático, reproduzindo algo que foi gravado: “meus senhores, vou proceder à sentença oral conforme o que diz a lei, em processo especial sumário foi aqui acusado H, residente na Rua…do Fontelo da Praça das Nozes número catorze em Marrazes, concelho de Leiria. Imputa o Ministério Público a prática de um crime de condução sem habilitação legal previsto no artigo terceiro número dois do decreto-lei dois barra noventa e oito de três de Janeiro. Não foi apresentada contestação até ao início da audiência, inexistindo questões prévias ou incidentais que importa conhecer. Provou-se com interesse para a questão da culpabilidade que a vinte e oito de Novembro de dois mil e onze, H. conduzia o veículo Renault Cinco às seis da tarde na rua dos pesares do sofrimento, sita na freguesia de Souto da Carpalhosa, concelho de Leiria, sem ser titular de carta de condução, querendo conduzir tal veículo tendo conhecimento que o fazia e que era proibido que assim actuasse. Mais se provou com respeito à determinação da sanção que o arguido não tem antecedentes criminais, confessou os factos, é operário, auferindo setecentos euros por mês e vive só, suportando a prestação mensal por força de crédito bancário para aquisição de casa no valor de trezentos euros. Nada mais se provou. Formei a minha convicção, quanto à factualidade atinente à culpabilidade, nas declarações do arguido, conforme nesta audiência foi decidido e documentado em acta e olhando ao disposto no artigo trezentos e quarenta e quatro número dois alínea a do código de processo penal, e no que diz respeito à factualidade atinente à determinação da sanção, atentei às declarações do arguido as quais por serem espontâneas, não havendo razão que as contrarie, mostraram-se credíveis, por último atentou-se ao registo criminal que está junto aos autos. Dos factos atinentes à culpabilidade extrai-se que o arguido realizou objectiva e subjectivamente o crime de condução sem habilitação legal, e assim incorre em pena de multa até duzentos e quarenta dias ou prisão até dois anos, conforme prevê o artigo terceiro número dois do decreto-lei dois barra noventa e oito de três de Janeiro. Olhando ao artigo setenta e na tarefa da escolha da pena, opta-se pela pena de multa, pois a conduta é ocasional, apesar da prevenção ser elevada atento o número de condutores que o fazem como é por todos sabido e consta nos últimos relatórios do Ministério da Administração Interna. Quanto à medida da pena olhando ao artigo setenta e um, atendo ao facto de conduzir fora do perímetro urbano de Leiria o que o favorece mas agrava o grau de ilícito a hora em que o facto ocorreu, hora em que a confiança no cumprimento da norma é maior pois hora de saída do trabalho. O dolo é directo. A confissão só mostra que o arguido é permeável ao dever ser imposto. As suas condições económicas impõem a consideração que o tirar a carta leva um mês de salário, mas também é facto que as empresas concedem facilidades de pagamento. Assim, por tudo o exposto, é adequada a pena de cinquenta dias de multa, e considerando o seu rendimento disponível, e que todos comem e se vestem levando com isso quarto do salário, sendo a sua remuneração regular e o crime algo excepcional, entende-se por justo fixar a taxa diária em sete euros, podendo noutra fase pedir autorização para pagamento em prestações juntando elementos certos da sua impossibilidade de pagamento no momento do pagamento. O processo foi simples e o ilícito não reveste de gravidade aos olhos fácticos da comunidade pelo que a taxa de justiça é reduzida a metade, olhando para o artigo trezentos e quarenta e quatro número dois c, e encargos devidos, agora Sr. Mário…vou ditar o dispositivo”
9.      O dispositivo ditado para a acta: “O Tribunal decide condenar H. pela prática em 28-11-2011 de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. no art. 3º nº 2 do DL 2/98 de 3-1 na pena de cinquenta dias de multa à taxa de seis euros; condenar H. nas custas, fixando-se a taxa de justiça no mínimo, reduzida ametade, e encargos devidos; boletim ao registo criminal; oportunamente em sede de liquidação descontar-se-à um dia de multa porque detido das seis da tarde às seis e vinte minutos”
10.  Eis pois a “oração” que a nosso ver deverá ser feita, oralmente prestada bem como o dispositivo ditado. Há algum problema em ouvir aquela “oração”? Há necessidade de a transcrever? É a transcrição compatível com a celeridade necessária ou o mínimo indispensável? 
11.   Agora, imagine-se este episódio sob o mesmo texto, mas transcrito: “em processo especial sumário foi aqui acusado H, residente na Rua…do Fontelo da Praça das Nozes número catorze em Marrazes, concelho de Leiria. Imputa o Ministério Público a prática de um crime de condução sem habilitação legal (imperceptível). Não foi apresentada contestação até ao início da audiência, inexistindo questões prévias ou incidentais que importa conhecer. Provou-se com interesse para a questão da culpabilidade que a vinte e oito de Novembro de dois mil e onze, H. conduzia o veículo, Renault Cinco às seis da tarde na rua sita na freguesia de Souto da Carpalhosa, concelho de Leiria, sem ter carta, agindo livre, deliberada e conscientemente bem sabendo ser proibida por lei. Mais se provou que o arguido não tem antecedentes criminais, confessou os factos, é operário, ganha setecentos euros por mês e vive só, e paga a prestação mensal por força de crédito bancário para aquisição de casa no valor de trezentos euros. Nada mais se provou. Formei a minha convicção, nas declarações do arguido (imperceptível) e atentei às declarações do arguido as quais por serem espontâneas, por mostrarem-se credíveis, por último atentou-se ao registo criminal que está junto aos autos. Extrai-se que o arguido realizou objectiva e subjectivamente o crime de condução sem habilitação legal previsto no art. 3º nº 2 do DL nº 2/98 de 3-1, (imperceptível). Olhando ao artigo setenta e na tarefa da escolha da pena, opta-se pela pena de multa, pois não tem antecedentes criminais, apesar da prevenção ser elevada atento o número de condutores que o fazem como se diz no Ministério da Administração Interna. Quanto à medida da pena atendo ao facto de conduzir fora do de Leiria. O dolo é directo. (imperceptível). A confissão só mostra que o arguido é (imperceptível) ao dever ser imposto. As suas condições económicas (imperceptível). Assim, por tudo o exposto, é adequada a pena de cinquenta dias de multa, e considerando o seu rendimento, entende-se por justo fixar a taxa diária em sete euros. O processo foi simples e (imperceptível) pelo que a taxa de justiça é reduzida a metade, olhando para o artigo trezentos e quarenta e quatro número dois c, e encargos devidos”
12.  Na transcrição acima descrita, o funcionário, atenta a oralidade e a coloquialidade natural mas também à tecnicidade inerente ao texto, apesar de oralizado, coloca o que não foi dito por lhe parecer irrelevante, coloca o que se ouve mal ou o que lhe parece, ou ainda coloca o que vai na rotina diária do seu ponto de vista (da “choca”). Logo, perante estas dificuldades, intervirá a entidade que presidiu ao acto: o juiz da 1ª instância. O legislador quis este resultado?
13.  Cremos pois que a transcrição traz consigo mais problemas desnecessários do que solução. A lei é um instrumento, mesmo lacunosa não deixa de ser um instrumento. E é um instrumento para ter utilidade, e ter utilidade é obviamente olhar aos efeitos.
14.  Não vale a pena referir os inconvenientes da reparação da nulidade parcial (art. 122 nº 1 do C.P.P.), basta atentar no quadro de funcionários de cada Tribunal da Relação, e as despesas daí inerentes. A realidade demonstrará a desnecessidade da transcrição, não sendo “o Carmo e a Trindade” que a mesma seja ouvida tão só como acontece na prova. Há leitura do Direito que aponta nesse sentido e a nossa ver única.
15.  Para tanto, impõe-se a) dizer oralmente a sentença de forma clara, sintética, cirúrgica; b) ter o cuidado de ser perceptível e seguro;
16.  Assim, e concluindo este trecho "oralizante" dir-se-à  não deverá haver qualquer transcrição, antes tão somente o envio do suporte técnico que documenta a audiência de onde consta a sentença oralmente prestada, como declarações nela prestada, a qual deverá ser ouvida caso sindicada no Tribunal da Relação.
17.  Note-se que a Circular do CSM nº 16/2011 só decidiu a quem compete realizar a transcrição, e não sobre a questão de saber se a solução é a transcrição, porque questão jurisdicional.

14 de novembro de 2011

Sigilo Bancário


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Ac. RL de 19-10-2011, rel. Paulo Fernandes da Silva

...o Ministério Público solicitou à “S…, SA.”, que identificasse a entidade bancária na qual está sediada a conta bancária através da qual foram efectuadas os aludidos carregamento. Satisfeito tal pedido, em 21.03.2011 o Ministério Público proferiu despacho no sentido de que fosse solicitado à C…, entre outras instituições bancárias, «a identificação do titular da conta bancária, com o envio da ficha de assinaturas, através da qual foram efectuados os carregamentos do cartão telefónico em causa», consignando que «se investiga a eventual prática de um crime de roubo e que o pedido se fundamenta no disposto no art. 79 n.º 2, al. d), do DL n.º 298/92, de 31.12, na redacção introduzida pela Lei n.º 36/2010, de 02.09»[ Cf. fls. 30 e 31.] . Na sequência de notificação feita no sentido daquele despacho, a C… veio, em carta datada de 06.04.2011, referir que
«1. Os elementos solicitados estão sujeitos a segredo bancário, nos termos do art. 78.° do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n°. 298/92, de 31 de Dezembro.
2. A nova redacção da alínea d), do n° 2, do RGICSF, efectuada pela Lei 36/2010, de 2 de Setembro, não fundamenta a derrogação do segredo. Não há qualquer redução, ampliação ou por qualquer forma alteração do regime de tutela do segredo em sede de processo penal, de processo civil, ou noutro qualquer tipo de processo. E em consequência, as normas legais, dos Código Penal, Código de Processo Penal e Código de Processo Civil continuam a aplicar-se do mesmo modo sempre que uma instituição de crédito for directamente interpelada por autoridade judicial ou judiciária.
3. Também não se verificando, face aos dados fornecidos, nenhuma das excepções estabelecidas no art. 79.° do mencionado Regime, designadamente nas alíneas f) do seu n.° 2, não podemos fornecer os elementos solicitados, sob pena de violarmos o dever de segredo a que estamos legalmente vinculados.
4. Assim, sem prejuízo da reiterada disponibilidade para colaborar, continuamos, nos termos do disposto no CPP, e tal como vem determinado no Acórdão do STJ 2/2008, de fixação de jurisprudência, no DR Série 1, 31 de Março, vinculados ao dever de guardar segredo.
Lembramos, porém, a V. Ex.a. a possibilidade de, ao abrigo do n.° 1 do citado art. 79.º, o(s) clientes(s) autorizar(em), pôr escrito, a prestação dos elementos ora solicitados» [Cf. fls. 54.] .
Entretanto, o Ministério Público promoveu que os autos fossem presentes ao Juiz de Instrução para que seja ordenada «a dispensa do dever de sigilo bancário» [Cf. fls. 55 a 57.] .
Conclusos os autos, o 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de , por decisão de 23.05.2011, considerou
«ilegítima a recusa de prestação de informações» bancárias solicitadas à C… e determinou que esta fornece-se em dez dias «a identificação completa do(s) titular(es) da(s) conta(s) bancária(s) e a cópia da(s) respectiva(s) ficha(s) de assinatura, através dos quais foram efectuados os carregamentos telefónicos identificados a fls. 15 a 18 e 21» [Cf. fls. 58 a 63.] .
Do recurso para a Relação.
Notificado daquela decisão, inconformado com a mesma, a C… veio dela interpor recurso para este Tribunal, concluindo a respectiva motivação nos seguintes termos: (transcrição)
«1. Andou mal o Tribunal a quo ao determinar à C… que prestasse a informação solicitada pelo Ministério Público de fls. …;
2. Tal informação encontra-se sujeita a segredo, nos termos do disposto no artigo 78.° do RGICSF;
3. O Tribunal a quo não interpretou correctamente a alínea d) do n.º 2 do artigo 79.º do RGICSF, que dispõe que os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal;
4. E aplicou indevidamente ao caso o disposto no artigo 135.°, n.° 2, do CPP pretendendo não ter a C…, legitimidade para se escusar à prestação da informação em causa, o que equivale a dizer que entendeu não existir in casu dever de guardar segredo profissional;
5. Nos termos do disposto no artigo 9.º do Código Civil, a norma contida na alínea d) do n.º 2 do artigo 79 ° do RGICSF não pode ser interpretada fora do contexto sistémico em que se integra;
6. E devem antes de mais aplicar-se no âmbito de um processo penal, as normas da CRP, designadamente a disposição contida no seu artigo 26.º que dispõe que a todos é reconhecido o direito a reserva da intimidade da vida privada e familiar;
7. Atendendo à forma como é actualmente utilizado o sistema bancário, o acesso à informação bancária dos cidadãos permite determinar os exactos contornos da respectiva vida privada;
8. Nos termos do disposto no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, a lei apenas pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos;
9. A ponderação exigida pela CRP para que ocorram as restrições referidas em 8 antecedente apenas poderá resultar da intervenção de um tribunal superior, nos termos do disposto no artigo 135.°, n.° 3, do CPP;
10. A interpretação que o Tribunal a quo faz da norma contida na alínea d) do n.° 2 do artigo 79.° do RGICSF não respeita o disposto nos artigos 18.º e 26.° da CRP, facto que aqui se argui para todos os efeitos,
11. A alteração legislativa que esteve na origem da actual redacção da alínea d) do n.° 2 do artigo 79.º do RGICSF visou apenas clarificar o regime anteriormente vigente, procedendo designadamente à harmonização da expressão com a que consta da alínea f) da mesma disposição legal;
12. O n.º 2 do artigo 79.° do CPP pretende apenas determinar as entidades às quais a informação sujeita a sigilo pode ser revelada, contendo regras de apuramento de legitimidade passiva para recepção da informação em causa, tal não significando contudo que não devam ser respeitadas as normas casuisticamente aplicáveis para que a informação possa ser prestada às entidades aí referidas;
13. Ao contrário do que pretende o Tribunal a quo, não veio o legislador introduzir na alínea d) do n.º 2 do artigo em causa qualquer excepção ao padrão constante das restantes alíneas do mencionado preceito, quer devem ser complementadas com as regras procedimentais aplicáveis que possibilitem a prestação de informação coberta pelo dever de segredo;
14. Assim, quando se refere que a informação bancária pode ser revelada, nos termos da alínea d) do n° 2 do artigo 79.º do RGICSF, às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal, deverá entender-se que tal informação deve ser prestada nos termos das disposições aplicáveis do processo penal, que se mantiveram inalteradas;
15. A introdução do actual n.° 3 do artigo 79.º do RGICST em nada interfere com as conclusões supra expendidas, antes evidenciando incongruência na interpretação que o Tribunal a quo faz da alínea d) do n.º 2 do artigo 79.º do RGICSF;
16. Atendendo ao que antecede, é legítima a escusa por parte da C… na prestação da informação solicitada, ao abrigo do disposto nos artigos 78.º do RGICSF e 135.º e 182.º, ambos do CPP;
17. A quebra de sigilo pela C…, fá-la-ia incorrer na violação do dever de segredo, nos termos e com as consequências previstos nos artigos 84.º do RGICSF e no artigo 195.º do Código Penal;
18. É assim ilícita a aplicação implícita feita in casu pelo Tribunal a quo do disposto no artigo 135.°, n.º 2, do CPP, violando o disposto nos artigos referidos em 16 antecedente;
19. Acresce que, ao usar da competência atribuída ao Tribunal da Relação pelo n.º 3 do artigo 135.º e pelo artigo 12.°, ambos de CPP, verifica-se a nulidade insanável a que se refere a alínea e) do artigo 119.º do CPP, que aqui expressamente se argui, com as consequências estatuídas no n.º 1 do artigo 122.° do CPP;
20. O despacho referido deverá assim ser revogado e substituído por outro que permita à C…, que guarde segredo acerca da informação em causa, a menos que venha a ser determinada a quebra de tal segredo, nos termos legais;
21. Assiste a C… legitimidade para interposição do presente recurso, nos termos do disposto no artigo 401.º, n.º 1, alínea d), do CPP
Termos em que deve o despacho ora recorrido ser revogado e substituído por outro que considere legítima a escusa pela C… na prestação da informação bancária solicitada e, sendo caso disso, desencadeie a aplicação do disposto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP» [Cf. fls. 2 a 17].
Notificado do indicado recurso, o Ministério Público respondeu ao mesmo, tendo concluído no sentido de que o recurso não merece provimento [Cf. fls. 24 a 35.] .
Neste Tribunal, na intervenção aludida no artigo 416.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ministério Público foi de parecer que o recurso deve improceder [Cf. fls. 76 e 77.] .
Devidamente notificado daquele parecer, a recorrente nada disse.
(...)
OBJECTO DO RECURSO: (...) em causa está tão-só saber se in casu a recusa de quebra de sigilo bancário da recorrente é legítima.
III.
FUNDAMENTAÇÃO.
1. Da determinação do direito aplicável.
Em causa está o chamado sigilo bancário.
Ora, na matéria releva desde logo o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, adiante designado simplesmente por RGICSF [Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31.12, e sucessivamente alterado pelo DL n.º 246/95, de 14.09, DL n.º 232/96, de 05.12, Rectificação n.º 4-E/97, de 31.01, DL n.º 222/99, de 22.06, DL n.º 250/2000, de 13.10, DL n.º 285/2001, de 03.11, DL n.º 201/2002, de 26.09, DL n.º 319/2002, de 28.12, DL n.º 252/2003, de 17/10, DL n.º 145/2006, de 31/07, DL n.º 104/2007, de 03.04, DL n.º 357-A/2007, de 31.10, Rectificação n.º 117-A/2007, de 28/12, DL n.º 1/2008, de 03.01, DL n.º 126/2008, de 21.07, DL n.º 211-A/2008, de 03.11, Lei n.º 28/2009, de 19.06, DL n.º 162/2009, de 20.07, Lei n.º 94/2009, de 01.09, DL n.º 317/2009, de 30.10, DL n.º 52/2010, de 26.05, Lei n.º 71/2010, de 18.06, Lei n.º 36/2010, de 02.09, DL n.º 140-A/2010, de 30.12, Lei n.º 46/2011, de 24.06, e DL n.º 88/2011, de 20/07.], nomeadamente os respectivos artigos 78.º e 79.º.
Aquele último preceito foi alterado significativamente pela Lei n.º 36/2010, de 2 de Setembro.
Tal diploma legal entrou em vigor “180 dias após a sua publicação” [Cf. artigo 2.º da referida Lei n.º 36/2010.], ou seja, no dia 01.03.2011.
No caso em apreço, o pedido de quebra de sigilo bancário foi apresentado em data posterior àquela, pelo que tem-se por aplicável no caso vertente o RGICSF na redacção decorrente da referida Lei n.º 36/2010.
2. Do regime legal à luz do direito aplicável.
O artigo 78.º do RGICSF [Segundo o qual, na redacção do DL n.º 1/2008, de 03/01, “1 - Os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços. 2 - Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias. 3 - O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços”. ] consagra o chamado dever de segredo bancário. –
Segundo ele as instituições de crédito e seus representantes, empregados ou agentes, não podem revelar informações relativas às relações existentes ou havidas entre tais instituições e os seus clientes, estando, designadamente, “sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias”.
O artigo 79.º do RGICSF consagra excepções àquele dever de sigilo.
Entre tais excepções, a alínea d) do respectivo n.º 2, na redacção da referida Lei n.º 36/2010, estipula que os “factos e elementos cobertos pelo dever de segredo» «podem ser revelados às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal» [Na redacção anterior, estipulava-se aí que os «factos e elementos cobertos pelo dever de segredo» «podem ser revelados nos termos previstos na lei penal e do processo penal».].
Nos termos no artigo 1.º, alínea b), do Código de Processo Penal, “considera-se «Autoridade judiciária» o juiz, o juiz de instrução e o Ministério Público, cada um relativamente aos actos processuais que cabem na sua competência”.
Ou seja, com as alterações decorrentes da Lei n.º 36/2010, as instituições de crédito e seus representantes, empregados ou agentes, passaram a ter que revelar o nome de clientes, assim como as contas destes e respectivos movimentos e outras operações bancárias desde que:
· A informação seja solicitada no âmbito de um processo penal,
· Por autoridade judiciária competente e
· Na sequência de despacho devidamente fundamentado.
Desde logo, configura-se que a excepção ao dever de segredo está restrita ao processo penal, entendido este como um encadeamento de actos tendentes ao apuramento da responsabilidade pelo cometimento de ilícito de natureza criminal. –
Depois, releva que a quebra de sigilo bancário decorra de despacho de juiz ou de magistrado do Ministério Público, conforme este ou aquele tenha a direcção da fase processual em que é suscitada a quebra de sigilo bancário.
Quer dizer, em sede de inquérito, tal despacho deve ser proferido pelo Ministério Público e fora dele por juiz de instrução ou de julgamento, conforme a fase em que se encontrar o processo penal onde a quebra de sigilo bancário é suscitada.
Finalmente, uma vez que tal quebra é susceptível de constituir violação à privacidade e ofensa à relação de confiança entre as instituições financeiras e os seus clientes, a excepção ao dever de segredo relativo ao regime em causa deve decorrer de despacho devidamente fundamentado, nomeadamente alicerçando a quebra de sigilo bancário num imperativo de protecção de interesses jurídicos proeminentes.
Dito de outro modo, a quebra de sigilo bancário deve fundar-se na protecção de um interesse jurídico superior àquele que o sigilo protege, a aferir em função das circunstâncias concretas do caso, sendo que, atenta a similaridade substancial entre a protecção da privacidade no que respeita às escutas telefónicas e à defesa do segredo profissional, a gravidade do crime que justifica a quebra do segredo bancário deve exprimir-se, pelo menos em regra, na punibilidade do mesmo “com pena superior, no seu máximo, a 3 anos” de prisão – cf. artigo 187.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal [Cf. em sentido que se tem por similar Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2.ª edição, páginas 364 e 365.]. O entendimento aqui sufragado implica que se tenha por tacitamente revogado o disposto no artigo 135.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal em sede de quebra de sigilo bancário [No mesmo sentido António João Latas,in http://www.tre.pt/docs/Sigilo_bancario.pdf  Conferindo-se ora às «autoridades judiciárias», Ministério Público e Juízes de Direito, a faculdade de derrogar o sigilo bancário, carece de sentido querer aplicar a este tal normativo, que por certo o legislador não desconhecia ao fazer publicar a Lei n.º 36/2010: diversamente do referido artigo 135.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal, a quebra do sigilo bancário nos termos da Lei n.º 36/2010 pode ora ser determinada pelo Ministério Público ou por Tribunal de 1.ª instância, não dependendo, pois, da intervenção de Tribunal Superior. .]Conferindo-seClaro que o Tribunal da Relação e o Supremo Tribunal de Justiça podem ser sempre chamados na situação.
Trata-se, contudo, de uma intervenção em sede recursivo e nunca para justificar uma recusa lícita de quebra de sigilo bancário, como sucedia em data anterior à entrada em vigor da Lei n.º 36/2010.
Nomeadamente, devendo o despacho que determina a quebra de sigilo bancário ser devidamente fundamentado, alicerçando tal quebra num imperativo de protecção de interesses jurídicos proeminentes, o recurso para o Tribunal Superior poderá ter por objecto precisamente a ponderação quanto aos interesses em presença.
Com um tal entendimento, mostram-se inteiramente salvaguardadas as regras constitucionais pertinentes na matéria.
Com efeito, fundando-se a quebra de sigilo bancário num imperativo de protecção de interesses jurídicos proeminentes têm-se por plenamente respeitados os princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação imanentes na matéria.
O direito de reserva de intimidade da vida privada e familiar constitucionalmente protegido cede em nome da realização da justiça e da segurança enquanto valores do Estado de Direito Democrático e na justa medida em que tal se tenha por necessário, proporcional e adequado, conforme artigos 26.º, n.º 1[ Na parte que ora releva, consagra-se aí que “a todos são reconhecidos os direitos (…) à reserva da intimidade da vida privada e familiar”.], e 18.º, n.º 2 [Segundo o qual “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.], da Constituição da República Portuguesa.
O entendimento de que a quebra de sigilo bancário pode ser determinada pelo Ministério Público ou por Tribunal de 1.ª instância, sem necessária intervenção de Tribunal Superior, alicerça-se ainda nos antecedentes da Lei n.º 36/2010 e mostra-se consonante com a evolução legislativa havida quanto ao sigilo bancário.
Com efeito, aquele diploma legislativo decorre do Projecto de Lei n.º 218/XI, apresentado pelo Partido Socialista.
Na respectiva exposição de motivos, afirma-se o propósito de conferir aos “juízes de direito, no âmbito das suas atribuições” prerrogativas em matéria de “derrogação do segredo profissional sobre os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional” [A exposição de motivos do Projecto Lei n.º 218/XI tem o seguinte teor: “A Lei n.° 94/2009, de 1 de Setembro, aprovou, entre outras, medidas de derrogação do sigilo bancário adequadas à repressão da criminalidade económica e financeira, munindo a administração fiscal de instrumentos que se revelaram úteis nesse combate. A intenção então aí expressa de conceder à administração fiscal meios de apuramento da verdade tributária adequados não se pode compaginar com uma interpretação daquele diploma legal da qual resulte aquela como tendo pretendido conferir mais poderes à administração fiscal do que aos juízes de direito. Aliás, com a publicação do Decreto-Lei n.° 317/2009, de 30 de Outubro - que alterou o disposto na Lei n.° 5/2002, de 11 de Janeiro, sobre segredo profissional -, deixou de ser sustentável qualquer interpretação que possa restringir o efeito que se pretendeu atingir.
Importa, pois, colocar um ponto final sobre quaisquer dúvidas que se possam suscitar, clarificando que os juízes de direito, no âmbito das suas atribuições, não devem experimentar mais restrições do que a administração tributária em matéria de derrogação do segredo profissional sobre os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional”.], sendo que no artigo 1.º do referido Projecto de Lei propõe-se que “os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo» possam “ser revelados aos juízes de direito, no âmbito das suas atribuições”.
Isto é, o Projecto de Lei n.º 218/XI tinha o claro propósito de conferir aos juízes de direito a autoridade de quebrar o sigilo bancário, propósito esse que na sequência de discussão parlamentar, em sede de Comissão, foi alargado ao Ministério Público [Cf. http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=35216.]. Daí a Lei n.º 36/2010 referir-se a “autoridades judiciárias” e não tão-só a “juízes de direito”.
Por outro lado, com a Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, no domínio da criminalidade organizada e económico-financeira, a quebra de segredo bancário passou a ceder quando “houver razões para crer que respectivas informações têm interesse para a descoberta da verdade”[ Cf. artigo 2.º, n.º 1, da citada Lei n.º 5/2002, de 11.01.] e depende “unicamente de ordem da autoridade judiciária titular da direcção do processo, em despacho fundamentado”[Cf. artigo 2..º, n.º 2, da referida Lei n.º 5/2002, de 11.01.] .
A Lei n.º 94/2009, de 1 de Setembro, além do mais, introduziu medidas de derrogação do sigilo bancário, conferindo à administração fiscal instrumentos acrescidos de combate à criminalidade económica e financeira [Cf. respectivo artigo 2.º, com as alterações introduzidas na Lei Geral Tributária, nomeadamente nos seus artigos 63.º-A e 63.º-B, e 3.º, com o aditamento de nova alínea ao n.º 2 do artigo 79.º do RGICSF, conferindo-se, ora “à administração tributária, no âmbito das suas atribuições” prerrogativas de quebra de sigilo bancário.] .
Enfim, o alargamento “às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal” da prerrogativa de quebra de sigilo bancário constitui o devir normal do nosso regime processual-penal.
Pretender conferir “às autoridades judiciárias” tão-só a capacidade de receber as informações bancárias quebradas é desatender àquela evolução legislativa, aos propósitos de combater eficazmente a criminalidade, introduzindo uma nuance interpretativa que o legislador não quis, nem tem sentido, esvaziando os claros propósitos da Lei n.º 36/2011 [Com o mesmo entendimento ao aqui seguido, veja-se o acórdão desta Relação e Secção de 14.09.2011, Processo n.º 1214/10.0PBSNT-A.L1., in http://www.pgdlisboa.pt/pgdl/docpgd/files/1214_.10.0PBSNT%20segredo%20bancario.pdf.
3. Do presente caso.
In casu a informação bancária que importa quebra de sigilo foi solicitada no âmbito de um processo penal, por autoridade judiciária competente para tal e em despacho fundamentado, alicerçando a quebra de sigilo bancário num imperativo de protecção de interesses jurídicos proeminentes.
Com efeito, estamos no âmbito de um processo-crime comum, em fase de inquérito.
No despacho do Ministério Público refere-se que a quebra de sigilo bancário diz respeito à investigação da “eventual prática de um crime de roubo”, cingindo tal quebra à “identificação do titular da conta bancária”, com “envio da respectiva cópia da ficha de assinaturas, através da qual foram efectuados os carregamentos do cartão telefónico em causa”.
Por sua vez, na decisão recorrida menciona-se que está “em investigação a prática de um crime de roubo” e que a quebra de sigilo reporta-se “à titularidade das contas através dos quais foram efectuados carregamentos dos cartões telefónicos que, posteriormente aos factos, vieram a ser inseridos no telemóvel subtraído ao ofendido”.
Embora parcos na fundamentação, configura-se esta suficiente à pretendida quebra de sigilo bancário.
Em causa está a identificação do titular ou titulares de conta bancária a partir da qual foram alegadamente feitos carregamentos de cartão colocado no telemóvel subtraído ao ofendido.
Tal identificação revela-se essencial à descoberta da verdade: a partir dela poder-se-á prosseguir a investigação do roubo em causa.
Mais, não se descortina meio alternativo de obtenção da informação bancária em causa, o que significa que sem ela a verdade do caso ficará comprometida.
Por outro lado, a violação da privacidade que a obtenção da informação em apreço implica configura-se bem inferior ao interesse jurídico que o crime em causa protege: a propriedade e a integridade física, assim como a liberdade de decisão e acção que o crime de roubo salvaguarda sobreleva manifestamente à mera identificação da conta bancária em causa e respectivo titular.
A situação vertente refere-se à investigação de um crime grave, por susceptível de pena de prisão superior a 3 anos – cf. artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal.
Ou seja, na ponderação de interesses em presença, sobreleva manifestamente o interesse da investigação e, pois, o da justiça e segurança frente à intimidade da vida privada e familiar em causa, sendo que a quebra de sigilo mostra-se necessária, proporcional e adequada na situação presente.
Em consequência, têm-se por ilegítima a recusa da recorrente em prestar as informações bancárias em causa, pelo que improcede o respectivo recurso.
IV.
DECISÃO.
Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso, termos em que se nega o seu provimento e se confirma integralmente a decisão recorrida.
(...)

8 de novembro de 2011

Não entrega de carta de condução nos termos do art. 500 CPP é crime?

1.Introdução

Há ou não crime de desobediência quando alguém, condenado na pena acessória de proibição de conduzir, não entrega o título habilitativo de condução após 10 dias do trânsito em julgado da sentença condenatória? E se não há, verifica-se o crime de violação de proibições descrito no art. 353 do Código Penal? Será a conduta acima delimitada pura e simplesmente atípica? A jurisprudência divide-se, bastando respigá-la. O Professor Pinto de Albuquerque é claro em dizer “na sentença condenatória, o juiz deve ordenar a entrega do título de condução, com a advertência do crime do art. 353 do CP”.

2. A gramática das sanções acessórias (em sentido amplo) decorrentes do ilícito rodoviário

Dispõe o art. 160 nº 1 do Código da Estrada que “os títulos de condução devem ser apreendidos para cumprimento da cassação do título, proibição ou inibição de conduzir”. Por sua vez no nº 3 afirma-se que “quando haja lugar à apreensão do título de condução, o condutor é notificado para, no prazo de 15 dias úteis, o entregar à entidade competente, sob pena de crime de desobediência, devendo, nos casos previstos no nº 1, esta notificação ser efectuada com a notificação da decisão”. Quiçá por ligeireza pensávamos que a lei era clara. Perante a problemática levantada, tacteando o atlas das diferentes regiões da interpretação, pensámos que tratar-se-ia daqueles arrufos gongóricos que tantas vezes dão nos juristas. Mas não. O problema coloca-se e a sua importância é clara: a absolvição, a condenação em pena de prisão até 1 ano ou pena de multa até 120 dias ou ainda a condenação em pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias.
Pena acessória é uma pena. Pressupõe, para a sua aplicação, a declaração na sentença de uma pena principal.
Sanção acessória é uma sanção que emerge de uma contra-ordenação.
Proibição de conduzir é uma pena acessória descrita no art. 69 do Código Penal.
Inibição de conduzir é uma sanção acessória decorrente de uma contra-ordenação.

3. A solução típica

É crime de desobediência nos termos do art. 500 do C.P.P., 348 nº 1 a) do C.P. e 160 nº 1 e nº 3 do C. Estrada pois a proibição de conduzir a que se refere o art. 160 do C. Estrada é a pena acessória de natureza penal que se encontra prevista no art. 69 do CPenal. Após a revisão do C. Estrada de 1998, a lei passou a prever com a cominação de desobediência simples a omissão do dever de entrega da carta de condução, quando a mesma seja imposta como pena acessória de proibição de condução, na esfera das infracções estradais.
Como questão subsequente, qual o prazo, o de 10 ou o de 15 dias (art. 500 ou art. 160 nº 3 do C.Estrada)? No prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo (art. 500 C.P.P.). É a norma do art. 500 do C.P.P. porque´dentro do âmbito da realidade a regular: a pena acessória.
Quando se consuma o crime?
No momento em que a não entrega ocorra após o trânsito mais o referidos dez dias, assim 41º dia após a data da sentença.
Caso haja notificação feita ao arguido para no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, entregar o título de condução, tal não integra uma ordem, mas um acto inútil.

Novidade bibliográfica: contra-ordenações

Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Univ. Católica Editora.

Na senda de outros comentários, o Prof. Pinto de Albuquerque dá luz a esta obra de 627páginas, com anexos relativos a infracções tributárias, ambientais, da concorrência, comunicações, sector financeiro.

6 de dezembro de 2007

O crime de abuso de confiança fiscal e o novo da Lei do Orçamento 2007

Acordam no Tribunal da Relação do PortoNos autos de processo comum singular n.º …./03.2TAMTS, do .º Juízo Criminal de Matosinhos, foram os arguidos B………., Lda, e C………. . id A fls. 330 pronunciados pela prática de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo art.º 107º do RGIT.Em 28 de Fevereiro de 2007 o Sr. Juiz proferiu o seguinte despacho:“Nos presentes autos é imputada aos arguidos (pessoa colectiva e pessoa singular) a prática de um crime de abuso de confiança fiscal.A necessidade deste despacho interlocutório prende-se com a entrada em vigor da Lei 53-A/2006, de 29/12 e que aprovou o Orçamento do Estado para 2007 designadamente com as alterações introduzidas ao Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei 15/2001, de 05/06). A alteração que ora nos interessa é aquela que respeita ao crime de abuso de confiança fiscal tipificado no art.º 105° da Lei 15/2001, de 05/06, mormente no que concerne à introdução de uma nova alínea ao número 4 da norma em causa.O aditamento efectuado traduz-se na consideração de que «os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito».Assim, da confrontação do anterior regime com o agora emergente da referida alteração resulta que o crime de abuso de confiança fiscal só é punível quando, para além do mais, decorra o prazo de 90 dias sobre o termo do prazo legal da entrega da prestação e seja efectuada uma notificação para que se proceda ao pagamento da prestação comunicada à administração fiscal, com acréscimo de juros e coima aplicável, em 30 dias a contar dessa mesma notificação.Não há qualquer dúvida que a primeira alínea (e antes da presente alteração a única) do n.º 4 do art.º 105° do RGIT consagra uma verdadeira condição objectiva de punibilidade. Mas será que esta nova alínea introduzida também constitui uma condição objectiva de punibilidade (a acrescer à já anteriormente existente)?Vejamos.Quando o legislador formula uma condição objectiva de punibilidade o escopo não é o «redesenhar» do ilícito; é uma condição própria e, nessa medida, apenas restritiva da punibilidade do facto típico sendo, pois, estranha a considerações de conduta proibida. É apenas um «aliud» ao ilícito, consubstanciando uma exigência que se reporta à garantia e não ao ilícito.Saber se a nova alínea é uma verdadeira condição objectiva de punibilidade é deveras importante para se poder determinar qual a solução a dar ao caso dos autos.O RGIT consagrava (antes da entrada em vigor da Lei do Orçamento) um tipo de ilícito que fazia apelo, para a sua punição penal, à necessidade de se verificar uma mora qualificada (90 dias) - e tanto assim é que a mera mora, ou seja, a mora inferior a 90 dias, era punida unicamente como contra-ordenação! Ora, com a introdução da já referida nova alínea, o legislador não veio dispor ou caracterizar uma qualquer mora - se o tivesse feito seria inevitável a conclusão de que estaríamos perante nova condição objectiva de punibilidade. O legislador consagrou uma nova circunstância que se dirige directamente ao agente do facto ilícito e que, por isso mesmo, deve ser integrada no próprio cerne da conduta proibida. A administração fiscal notifica o agente e este tem 30 dias para liquidar a prestação já comunicada através da competente declaração e só se decorrer aquele prazo e o agente omitir a liquidação é que existe crime.Estamos em crer que esta deverá ser a solução se atentarmos no facto de até à data o legislador apenas ter criminalizado uma mora qualificada relativamente ao imposto, que é o objecto material do crime em questão, e com o novo aditamento ter vindo estabelecer uma mora específica, num contexto relacional qualificado, e dirigida ao próprio agente do facto ilícito.Aliás, estas considerações saem confirmadas se atentarmos na plêiade de questões que se podem colocar e para as quais, em bom rigor, não há resposta válida e cabal. Desde logo se põe a questão de quem deve ser notificado para o cumprimento? A coima respeita a que contra-ordenação? Qual o montante da mesma? Quem a fixa? Todas estas questões que, em bom rigor, ainda não encontram resposta cabal e válida no ordenamento jurídico, necessitando, pois, de ulterior intervenção do legislador neste sentido, acabam por induzir pela interpretação que ao permitir-se que a administração fiscal entre em confronto directo com o eventual agente do crime o legislador está a proceder a um nove «recorte» ou a «redesenhar» o comportamento violador do bem jurídico património fiscal. O que, assim sendo, também significa que o ilícito é «reconfigurado» pelo adicionamento de um novo elemento e não que tenha havido a consagração de uma condição objectiva de punibilidade (deixando, pois, intocado o tipo-de-ilícito já anteriormente desenhado).Ora, isto vale por concluir no sentido de que a conduta dos autos se encontra despenalizada.Consequentemente, declara-se extinto o procedimento criminal intentado contra os arguidos”.(…)
Nesta Relação, o Ex.mo PGA emite douto parecer no sentido de que os recursos merecem provimento.(…)
Posto isto, analisemos a questão que nos é colocada.O que para nós até é fácil já que existem duas correntes jurisprudenciais, ambas com excelentes argumentos, bastando, por isso, aderir a uma delas.Escreveu-se no acórdão desta Relação de 14-02-2007, disponível em www.dgsi.pt:“Como questão prévia, ao conhecimento do mérito do recurso, importa equacionar a alteração originada pela nova redacção atribuída ao artigo 105º/4 do RGIT, dada pelo artigo 95º da Lei 53-A/2006, Lei do Orçamento, que dispõe que «os factos só são puníveis se:a) tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo legal do prazo de entrega da prestação e,b) a prestação comunicada à administração tributária, através da correspondente declaração, não for paga acrescida de juros respectivos e do valor da coima aplicável no prazo de 30 dias após a notificação feita para o efeito», que constitui a parte da norma com a nova redacçãoComo decidiu o Ac STJ, cremos que ainda inédito, proferido no processo 4086/06 da 3ª secção, que passaremos a seguir de perto, transcrevendo, com a devida vénia:«Duas orientações surgem, desde já, sobre a interpretação desta norma:Uma que entende que o legislador manteve a anterior condição de punibilidade agora constante da alínea a).No regime anterior antes do aditamento da referida alínea b), a possibilidade de pagamento da prestação tributária, com o limite de € 2.000,00, era uma circunstância extintiva da responsabilidade criminal.Actualmente, o não pagamento da prestação tributária, seja qual for o valor que esteja em dívida, constitui uma segunda condição de punibilidade.Atente-se na letra da lei «os factos só são puníveis».Os defensores desta posição, entendem que, não obstante a alteração do regime punitivo, o crime de abuso de confiança fiscal consuma-se com o vencimento do prazo legal de entrega da prestação tributária e que, em sede de tipicidade, a lei orçamental nada alterou. Todavia, ressalvam a aplicabilidade do disposto no artigo 2°/4 C Penal, uma vez que o regime actualmente em vigor é mais favorável para o agente, quer sob o prisma da extinção da punibilidade pelo pagamento, quer na óptica da punibilidade da conduta, como categoria que acresce à tipicidade, à ilicitude e à culpabilidade, cfr. decisão do Tribunal Colectivo de Santarém de 24.1.2007. Numa outra perspectiva se colocam aqueles para quem, no regime anteriormente vigente, o tipo de ilícito se reconduzia a uma mora qualificada no tempo - 90 dias - sendo a mora simples punida como contra-ordenação, ilícito de menor gravidade. Neste momento, o legislador adita uma circunstância que por se referir ao agente, e não constituindo assim um «alliud» na punibilidade como parece a norma fazer crer, encontra-se no cerne da conduta proibida. Aditam, nesta linha de argumentação que não é o facto de o legislador afirmar que “só são puníveis se” que torna líquida a existência de uma condição objectiva de punibilidade. É antes a necessidade de o legislador pretender caracterizar uma determinada mora.Assim, impõe-se agora que o agente não entregue à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar pelo prazo superior a 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação e desde que não tenha procedido ao pagamento da prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito. Nesta perspectiva e, para os defensores desta tese, existe algo de novo no recorte operativo do comportamento proibido violador do bem jurídico património fiscal, precisamente o facto de a administração fiscal entrar em directo confronto com o eventual agente do crime. Em suma, o legislador até aqui criminalizou uma mora qualificada relativamente a um objecto material do crime, o imposto, atendendo aos fins deste. Agora, pretendeu estabelecer como crime uma mora específica e num contexto relacional qualificado. Consequentemente, concluem pela despenalização, cfr. decisão do 2º Juízo de competência especializada de Leiria.A questão suscitada entronca directamente com a da distinção entre condição objectiva de punibilidade e pressuposto processual. Como referem Zipf e Maurach, in Derecho Penal, Parte General, I vol., 371 e ss, o poder punitivo do Estado é fundamentalmente desencadeado pela realização do tipo imputável ao autor. Não obstante, em determinados casos, para que entre em acção o efeito sancionador requerem-se outros elementos para além daqueles que integram o ilícito que configura o tipo. Por vezes essas inserções ocasionais da lei, entre a comissão do ilícito e a sanção concreta, inscrevem-se no direito material - hipótese em que se fala de condições objectivas ou externas de punibilidade noutros casos constituem parte do direito processual e denominam-se pressupostos processuais.As condições objectivas de punibilidade são aqueles elementos do tipo situados fora do delito, cuja presença constitui um pressuposto para que a acção antijurídica tenha consequências penais. Apesar de integrarem uma componente global do acontecer e da situação em que a acção incide, não são, não obstante, parte desta acção.Por seu turno, os pressupostos processuais são regras do procedimento cuja existência se fundamenta na possibilidade de desenvolver um procedimento penal e ditar uma sentença de fundo. Como os pressupostos processuais pertencem exclusivamente ao direito processual não afectam nem o conteúdo do ilícito, nem a punibilidade do facto, limitando-se exclusivamente a condicionar a prossecução da acção penal.Na distinção dos dois conceitos, e segundo Roxin, é elegível uma solução intermediária. Assim, parece preferível, considerar que a consagração de um elemento ao Direito material e, consequentemente a sua eleição como condição de punibilidade, não depende de que esteja desligado do processo, nem sequer de qualquer uma conexão com a culpabilidade, mas sim da sua vinculação ao acontecer da facto, solução proposta, essencialmente, por Gallas. Este sustenta que as circunstâncias independentes da culpa podem ser consideradas condições objectivas de punibilidade se estão em conexão com o facto, ou seja, se pertencem ao complexo de facto no seu conjunto. Nesta lógica os pressupostos processuais são as circunstâncias alheias ao complexo do facto.Schmidhauser precisou esta posição exigindo para o Direito material, e em relação à condição de punibilidade, que se trate de uma circunstância cuja ausência já em conexão imediata com o facto tenha como consequência definitiva a impunidade do agente. O breve discurso teórico ora elaborado habilita-nos a considerar que existe alguma confusão conceptual na segunda daquelas posições. Tal patologia resulta, desde logo, da circunstância de o crime de abuso de confiança fiscal ser um crime omissivo puro que se consuma no momento em que o agente não entregou a prestação tributária que devia, ou seja, consuma-se no momento em que o mesmo não cumpre a obrigação tributária a que estava adstrito. A norma do artigo 105º do RGIT não permite outra interpretação e reconduzir ao núcleo da ilicitude e da tipicidade o que são condições de exercício da acção penal não está de acordo com o espírito ou a letra da lei. A mesma confusão, expressa naquela posição, resulta da própria noção do bem jurídico tutelado. O que está em causa não é a mora, que constitui uma mera condição de punibilidade, mas sim a conduta daquele que perante a administração fiscal, agindo esta no interesse público, omite um dos seus deveres fundamentais na sua relação com o Estado. Assim, entendemos que, perante esta alteração legal, nos encontramos perante uma condição objectiva de punibilidade na medida em que se alude a uma circunstância em relação directa com o facto ilícito, mas que não pertence nem ao tipo de ilícito nem à culpa. Constitui um pressuposto material da punibilidade, cfr. Jeschek, Tratado de Derecho Penal, 506.Na esteira dos autores citados, diferenciamos a construção relativa ao pressuposto processual. Na verdade, na condição de punibilidade expressa-se o grau específico de violação da ordem jurídica enquanto no pressuposto processual responde a circunstância que se opõe ao desenvolvimento do processo penal. A ausência dos primeiros conduz à absolvição e a dos segundos ao arquivamento.Por qualquer forma, quer em relação à condição objectiva de punibilidade quer em relação ao pressuposto processual na asserção de Bulow, citado por Figueiredo Dias, segundo o qual pressupostos processuais são pressupostos, não da existência de um processo, mas sim da admissibilidade de um processo, estamos em face de institutos cujo conteúdo contende com o próprio direito substantivo, na medida em que a sua teleologia e as intenções jurídico criminais que lhe presidem têm ainda a ver com a efectivação de punição que nesta mesma encontram a sua razão de ser, devendo ser dado o tratamento mais favorável.Para alcançar a mesma conclusão numa outra perspectiva se coloca Taipa de Carvalho, in Sucessão de Leis no tempo, 213, quando estabelece a destrinça entre normas processuais penais materiais e normas processuais penais formais. As primeiras contendem directamente com os direitos do arguido e/ou condicionam a efectivação da responsabilidade penal, enquanto as segundas, regulamentando o desenvolvimento do processo, não produzem os efeito jurídico materiais derivados das primeiras. A aplicação do princípio da lei mais favorável estaria reservado às primeiras enquanto que às segundas vigoraria o princípio “tempus regit actum”.Entendemos que sendo a génese de um instituto processual ou substancial directamente equacionada com a tutela das garantias do cidadão, ou com a possibilidade de intervenção estadual no capítulo dos direitos, liberdade e garantias, é um imperativo constitucional o da aplicação da lei mais favorável, artigo 29º/4 da Constituição da República.Do exposto deriva, duas ordens de consequências:- a primeira consubstancia-se no entendimento de que a nova redacção do artigo 105 do RGIT e, nomeadamente do seu nº. 4, consagra uma condição objectiva de punibilidade;- a segunda, que radica na primeira, conduz à conclusão da aplicabilidade de tal condição ao caso vertente por aplicação directa do principio da lei mais favorável, ínsito no artigo 2º/4 C Penal”. O Acórdão desta Relação de 6-06-2007, relatado pela Ex.ma Desembargadora, Dr.ª Isabel Martins, em cujo sumário se lê, “a norma da alínea b) do nº 4 do art.º 105º do RGIT, introduzida pela Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro, é uma norma descriminalizadora”, vai ao fundo da questão e conclui – e bem - pela despenalização.Subscrevemos, sem reservas, o que nele se escreve:“Comete o crime de abuso de confiança fiscal, conforme artigo 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, «quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava obrigado a entregar».Na versão primitiva, dizia o n.º 4 daquele artigo 105.º que o facto só era punível se tivessem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação. E o n.º 6 do mesmo artigo 105.º estabelecia que «se o valor da prestação (...) não exceder € 2000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária». Ao crime de abuso de confiança contra a segurança social é correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 4 e 6 do artigo 105.º (artigo 107.º, n.º 2, do RGIT).Sem divergências que se conheçam, tem sido entendido que o n.º 4 estabelecia uma condição de punibilidade (o decurso de mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação) e que o n.º 6 consagra uma causa de extinção da responsabilidade criminal (o pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável até 30 dias após notificação para o efeito pela administração tributária), limitada, todavia, pelo valor da prestação («se o valor da prestação ... não exceder € 2000»).O artigo 95.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2007, alterou a redacção do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, o qual passou a ter a seguinte redacção:«4 – Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:«a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;«b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito.»Perante a alteração legislativa, a primeira constatação que se impõe é a de que o legislador não alterou o n.º 6 do artigo 105.ºOu seja, manteve uma causa de extinção da responsabilidade penal (limitada a um certo valor máximo da prestação), quando passou a considerar os factos que consubstanciam a causa de extinção da responsabilidade penal, mas agora sem qualquer limite, como causa de não punição penal pelo facto.Se a solução da coexistência da actual alínea b) do n.º 4 com o n.º 6 (inalterado) não se mostra congruente, releva, pelo menos, para evidenciar que o legislador não quis alterar a redacção do n.º 6 do artigo 105.º por forma a não limitar a eficácia extintiva da responsabilidade criminal pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável a um valor máximo da prestação.Se o tivesse querido fazer, não aditaria uma nova alínea ao n.º 4 e bastava-lhe eliminar o primeiro segmento do n.º 6 («se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder € 2000»).Parece, portanto, que se pode concluir que o pagamento da prestação comunicada à administração tributária através da respectiva declaração, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito, deixou de ser configurada como uma verdadeira causa de extinção da responsabilidade criminal.A punibilidade do facto passa a depender, para além de terem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação (alínea a) do n.º 4 do artigo 105.º), de a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não ser paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito (alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º).O facto só é punível se verificadas essas duas condições.A questão com que nos confrontamos está em saber qual a consequência que implica, nos processos pendentes de recurso, a introdução legislativa de uma condição de punição do facto que não se mostra preenchida, pela razão simples de que a sua verificação não era reclamada no momento em que foi deduzida a acusação nem no momento da sentença da 1.ª instância.Ao que sabemos as soluções jurisprudenciais da questão têm sido divergentes, deparando-se-nos duas grandes linhas antagónicas de orientação. Uma passa pelo entendimento de que, não se verificando a condição, a conduta está despenalizada, o que deve ser imediatamente declarado, outra vai no sentido de «procurar» que ao arguido seja dada a oportunidade de satisfazer a condição (notificando-o para, em 30 dias, pagar a prestação, acrescida dos respectivos juros e do valor da coima aplicável) para só chegar àquele resultado se o arguido vier a satisfazer o pagamento.Na última solução não se encontra critério uniforme quanto às vias de notificação, no que se compreende a própria competência para a mesma, e pode, sem dificuldade, antecipar-se a controvérsia na resolução dos mais variados problemas que, inevitavelmente, advirão dessa notificação.Seja-nos permitido, aqui, à laia de desabafo, recordar palavras de Taipa de Carvalho:«Não pode haver uma jurisprudência penal justa e eficaz, se esta – a jurisprudência – não for precedida de uma legisprudência.«Legisprudência pressupõe e significa bom senso, racionalidade jurídica, coerência normativa, domínio da dogmática e da técnica legislativa em geral e do ramo do direito em que o legislador intervém em especial, rigor e precisão linguística – o que exige domínio da estrutura e da semântica da língua. Digamos que, tal como a jurisprudência – aplicação da lei -, também a legisprudência pressupõe a virtude da «prudência», isto é, uma «arte» e uma «sabedoria», ou, se preferirmos, uma técnica legislativa (-) e um saber jurídico.«Ora, legisprudência é o que, efectivamente, não tem acontecido entre nós. A míope mundividência tecnocrática do nosso tempo, com a sua arrogante e «pragmática» autosuficiência, tem contribuído, decisivamente, para o caos legislativo e, consequentemente, para uma baixa da qualidade da justiça penal.«As leis multiplicam-se, irracionalmente, atropelam-se, contradizem-se e, deste modo, se neutralizam; à codificação reflectida, participada, unitária, coerente e relativamente estável sucede-se a substituição dos códigos penais com a mesma facilidade como se de leis extravagantes se tratasse; o casuísmo legislativo impera, com uma proliferação infindável de leis avulsas. Este fenómeno, pelo seu exagero, desagrega o sistema e corrói a ordem jurídica, especialmente a jurídico-penal, ao mesmo tempo que gera a insegurança jurisprudencial e a desconfiança do cidadão face ao direito e aos tribunais (-).«Tal procedimento contraria a dignidade e correspondente responsabilidade do legislador enquanto órgão (função) nuclear do Estado-de-Direito.» Voltando à questão que nos ocupa, e como antes referimos, a alteração legislativa introduzida ao n.º 4 do artigo 105.º significa a introdução de uma circunstância nova para a punição do facto.O facto só é punível se se verificarem, cumulativamente, as condições descritas nas alíneas a) e b). Por regra, o facto típico, ilícito e que possa ser pessoalmente censurado ao agente também é punível.No entanto, alguns tipos reclamam a verificação de outras circunstâncias, além da culpa por uma acção típica e ilícita, para que haja punibilidade e, noutros casos, a concorrência de determinadas circunstâncias exclui a punibilidade que, de outro modo, se produziria.Tais elementos adicionais e excepcionais, que não pertencem nem à tipicidade, nem à ilicitude, nem à culpa, porque não respeitam à função dogmática e político-criminal própria destas categorias, são incluídos numa sede sistemática própria que conformará uma quarta categoria da teoria geral do crime. «Com o tipo de ilícito e o tipo de culpa não se esgota o conteúdo do sistema do facto penal, antes se torna indispensável completá-lo com uma outra categoria, que bem poderá chamar-se da “punibilidade”».Nesta categoria, recolhem-se e elaboram-se uma série de elementos ou pressupostos que o legislador, por razões diversas, pode exigir para fundamentar ou excluir a imposição de uma pena e que só têm em comum não pertencerem nem à tipicidade, nem à ilicitude nem à culpa e o seu carácter contingente, quer dizer, só se exigem em alguns tipos concretos. Como diz Figueiredo Dias, «décadas de especulação levaram só à magra conclusão (negativa) de que ali se trata de um conjunto de pressupostos que, se bem que se não liguem nem à ilicitude, nem à culpa, todavia decidem ainda da punibilidade do facto».Na categoria da punibilidade incluem-se os pressupostos adicionais que a fundamentam (as chamadas condições objectivas de punibilidade) e os pressupostos que a excluem (as chamadas causas de exclusão da punibilidade ou da pena).Pressuposto de punibilidade é todo o elemento que, não relevando ao nível do tipo-de-ilícito ou do tipo-de-culpa, todavia torna o facto susceptível de provocar um efeito ou consequência jurídica, tornando possível que esta se desencadeie.As condições objectivas de punibilidade são circunstâncias que devem somar-se à acção para que se gere a punibilidade. A concreta punição do facto depende da sua afirmação (concorrência).Delas devem distinguir-se as condições objectivas de procedibilidade que condicionam, não a existência do crime, mas a sua perseguição penal, ou seja, a abertura de um processo penal. Trata-se, aqui, de pressupostos processuais, de obstáculos processuais.A propósito da distinção, refere Jeschceck que a falta de uma condição objectiva de punibilidade, no momento do julgamento implica a absolvição, quando falta um pressuposto o processo “detém-se”. Também Roxin, salientando as dificuldades de delimitação entre direito material e direito processual a partir das suas consequências práticas, reconhece que, não obstante, estas são distintas. Assim, a atribuição de um elemento a um ou outro sector do direito repercute-se, sobretudo, num diferente tratamento no processo penal. A falta um pressuposto jurídico-material da punibilidade, dá lugar à absolvição; enquanto que a falta de um pressuposto de procedibilidade determina a suspensão ou o arquivamento.As causas de exclusão da pena são circunstâncias cuja concorrência exclui a punibilidade e cuja não concorrência é pressuposto da punibilidade. A este propósito é frequente distinguir entre causas pessoais de exclusão da punibilidade, causas materiais (objectivas) de exclusão da punibilidade e causas de supressão da punibilidade. As causas pessoais de exclusão da punibilidade são circunstâncias que se opõem à punição por concorrerem no momento da acção; nas causas pessoais de exclusão da punibilidade a exclusão da pena não afecta todos os intervenientes mas só aquele em que se verifica o elemento que exclui a punibilidade. Neste ponto radica a diferença com a causa material (objectiva) de exclusão da punibilidade. As causas pessoais de supressão da punibilidade são circunstâncias que só se produzem depois da comissão da acção punível e que eliminam, com carácter retroactivo, a punibilidade.Figueiredo Dias salienta a ideia de que os pressupostos (adicionais) de punibilidade, seja sob a forma de «condições objectivas de punibilidade», seja sob a forma de «causas de exclusão da pena», «têm que ver directamente com a dignidade penal do facto, com exigências de prevenção, geral e especial, que nele radicam mas não esgotam o seu significado no tipo de ilícito ou no tipo de culpa. Por outras palavras, ainda: o facto em que se verifica o tipo de ilícito e o tipo de culpa é em princípio também um facto digno de pena; mas pode acontecer que excepcionalmente o não seja se, por falta de uma condição de punibilidade, se revela que o facto como um todo, na sua unidade, na sua imagem global, não atinge os limiares mínimos da exigência preventiva da punição, em suma, da sua dignidade penal».E parece ser, justamente, a consideração da dignidade penal do facto, ou melhor, da falta de dignidade penal do facto que levou o legislador à alteração legislativa que nos ocupa.No relatório OE2007, sob a epígrafe «Despenalização da Não Entrega de Prestações Tributárias (Retenções de IR/Selo e IVA)», consta a seguinte exposição de motivos:«A entrega da prestação tributária (retenções de IR/selo e IVA) está actualmente associada à obrigação de apresentação de uma declaração de liquidação/pagamento. A falta de entrega da prestação tributária pode estar associada ao incumprimento declarativo ou decorrer simplesmente da falta de pagamento do imposto liquidado na referida declaração. Quando a não entrega da prestação tributária está associada à falta declarativa existe uma clara intenção de ocultação dos factos tributários à Administração Fiscal. O mesmo não se poderá dizer, quando a existência da dívida é participada à Administração Fiscal através da correspondente declaração, que não vem acompanhada do correspondente meio de pagamento, mas que lhe permite desencadear de imediato o processo de cobrança coerciva.«Tratando-se de diferentes condutas, com diferentes consequências na gestão do imposto, devem, portanto, ser valoradas criminalmente de forma diferente.«Neste sentido, não deve ser criminalizada a conduta dos sujeitos passivos que, tendo cumprido as suas obrigações declarativas, regularizem a situação tributária em prazo a conceder, evitando-se assim a “proliferação” de inquéritos por crime de abuso de confiança fiscal que, actualmente, acabam por ser arquivados por decisão do Ministério Público na sequência do pagamento do imposto.»A «justificação» do legislador para a alteração legislativa, embora revele uma opção político-criminal baseada ainda na prossecução de fins extra-penais (evitar os custos da proliferação de inquéritos), não deixa, por isso, de reflectir a ideia da dignidade penal do facto.E, como diz Figueiredo Dias, podem ser, efectivamente, imposições de fins extra-penais que fundamentam a punibilidade; tais imposições finais conformam opções político-criminais que, através da ideia base da dignidade penal, são vertidas na categoria sistemática dos pressupostos da punibilidade. O sistema interioriza-as e interiorizando-as exprime essencialmente a ideia de que o comportamento é um tal que, apesar do conteúdo do tipo de ilícito e do tipo de culpa que contém, se não revela na sua globalidade, segundo o desvalor ético-social do seu substrato, comunitariamente insuportável. Do que se trata nas exigências de terem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação (alínea a) do n.º 4 do artigo 105.º) e de a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não ser paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito (alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º) é de circunstâncias cuja verificação é reclamada para que se gere a punibilidade.A punibilidade da conduta está subordinada à ocorrência (verificação) de tais condições.Propendemos a vê-las como condições objectivas de punibilidade.A condição da alínea a) reclama o mero decurso do prazo de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.A qual é imposta por exigências de compatibilidade lógica com a conduta contra-ordenacional prevista no artigo 114.º do RGIT. Com efeito, a não entrega da prestação tributária pelo período de 90 dias é punível com coima; só decorridos os 90 dias é que a falta de entrega da prestação tributária pode constituir crime.Agora, com a introdução da alínea b) ao n.º 4, a falta de entrega da prestação tributária só poderá constituir crime fiscal se tiverem decorrido 90 dias após o termo do prazo em que a entrega deveria ter sido efectuada e, além disso, é necessário que, decorrido tal prazo de 90 dias, o omitente seja notificado para, em 30 dias, pagar a prestação, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável e que, decorridos esses 30 dias, tal pagamento não se mostre efectuado.As condições das alíneas a) e b) do n.º 4 são cumulativas e material e temporalmente distintas. À condição da alínea a) tem de acrescer (em momento temporal posterior aos 90 dias) a condição da alínea b) e a sua satisfação passa por um prévio acto expresso de notificação para pagamento, no prazo fixado (30 dias), das quantias referidas (sendo que a “coima aplicável” parece que terá de ser a prevista no artigo 114.º[18] e isto também porque a falta de entrega por período superior a 90 dias é punível com coima desde que os factos não constituam crime).O entendimento de que essas circunstâncias assumem a natureza de pressupostos adicionais de punibilidade e verdadeiras condições objectivas de punibilidade não é, porém, isento de dúvidas.As condições objectivas de punibilidade são factos futuros e incertos (condições), independentes da vontade do autor (objectivas), que determinam/condicionam a punição; não desempenham uma função estruturante do facto típico-ilícito, este já está completamente preenchido, independentemente de concorrerem ou não.Ora, torna-se difícil afirmar a existência de um crime completo em todos os seus elementos sem o decurso do prazo de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação (no prazo de 90 dias a falta de entrega da prestação conforma uma contra-ordenação) e, agora, sem a notificação do omitente para pagar a prestação, juros respectivos e coima, no prazo de 30 dias, e a falta de pagamento, nesse prazo. Ou seja, que tais circunstâncias sejam puramente objectivas e extrínsecas ao tipo-de-ilícito, condicionando unicamente a punibilidade.Não parece que a tais circunstâncias sejam absolutamente alheias considerações de ilicitude e, por outro lado, estão materialmente ligadas à tipicidade; são imprescindíveis para que se confira relevância típica à conduta.De qualquer modo, sejam essas circunstâncias condições objectivas de punibilidade ou próprios elementos objectivos do tipo, tal é indiferente para a solução da questão que nos ocupa. As condições objectivas de punibilidade participam de todas as garantias do Estado de Direito impostas aos elementos do tipo.Também elas estão sujeitas ao princípio da legalidade, cujo conteúdo essencial se traduz em que não pode haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa, e também às suas fundamentais implicações consubstanciadas na proibição da analogia e no princípio da proibição da retroactividade desfavorável (in malem partem, isto é, contra o agente).A proibição da retroactividade funciona apenas a favor do agente e não contra ele (tal como acontece com a analogia e pelas mesmas razões substanciais). Por isso, a proibição da retroactividade vale relativamente a todos os elementos da punibilidade, à limitação de causas de justificação, de exclusão ou de diminuição da culpa e às consequências jurídicas do crime, qualquer que seja a sua espécie.A consequência mais relevante do princípio segundo o qual a proibição da retroactividade só vale contra o agente traduz-se no princípio da aplicação da lei ou regime mais favorável (retroactividade favorável - lex mellior), devendo, hoje, considerar-se que, tanto a proibição da retroactividade in peius como a imposição da retroactividade in mellius, são garantias ou mesmo direitos fundamentais constitucionalmente consagrados.No âmbito da fundamentação da retroactividade da lei penal mais favorável encontram-se razões e justificações várias. A posição mais acertada parece ser a que sustenta que o fundamento da retroactividade da lei penal mais favorável se deve ver na ausência de interesse por parte do Estado seja em punir determinadas acções seja em aplicar-lhes uma pena mais grave, quer dizer, em definitivo, razões político-criminais que, precisamente por o serem, podem girar em torno de uma multiplicidade de considerações materiais, recondutíveis às exigências do princípio da proibição do excesso ou do merecimento de pena.Como diz Roxin:«Se no momento da condenação o legislador considera que uma conduta é menos merecedora de pena ou inclusivamente que não o é, em absoluto, de um ponto de vista político-criminal não teria o menor sentido, não obstante, punir de acordo com a concepção vigente no momento do facto, que, entretanto, foi superada.» A alteração legislativa consubstanciada na adição da alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT confronta-nos com um problema de aplicação da lei penal no tempo que tem de ser resolvido na consideração desses princípios, os quais foram expressamente acolhidos na Constituição (artigo 29.º), ou seja, na imposição da irretroactividade in peius e da retroactividade in mellius.As hipóteses de alterações legais, englobadas na designação de sucessão de leis penais, não prescindem da compreensão de que, sob essa designação, se engloba tanto a sucessão em sentido amplo como a sucessão stricto sensu.«Sendo assumida, muitas vezes, num sentido amplo, há, todavia, que reconhecer que tal acepção é metodologicamente incorrecta e pode conduzir a consequências (decisões) práticas injustas e mesmo inconstitucionais. Daqui, a importância teórico-prática da definição rigorosa de sucessão de leis penais: a caracterização da sucessão de leis stricto sensu é pressuposto e condição da aplicação (retroactiva) da lei penal mais favorável (CRP, artigo 29.º, n.º 4 – 2.ª parte; CP, artigo 2.º, n.º 4). Por outras palavras, é conditio sine qua non da delimitação do âmbito de intervenção do n.º 2 (despenalização do facto) e do n.º 4 (atenuação da responsabilidade penal: aplicação retroactiva da lex mitior).».Trata-se, afinal, de delimitar o âmbito de aplicação do n.º 2 do artigo 2.º do Código Penal (descriminalização/despenalização e consequente aplicação retroactiva da lei nova) e do n.º 4 do mesmo artigo 2.º (de entre as leis em confronto, aplicação da lei mais favorável), o que significará a decisão de pura e simples inexistência de responsabilidade penal ou, considerando-se que se está perante uma verdadeira sucessão de leis penais, decisão de aplicação da lei penal menos desfavorável ao agente.Ainda que se parta do entendimento de que, com a actual alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, o legislador introduziu apenas uma nova condição objectiva de punibilidade, parece forçoso concluir que, a partir de 1 de Janeiro de 2007, a punibilidade do crime de abuso de confiança fiscal e do crime de abuso de confiança contra a segurança social reclama a verificação desse pressuposto.Na sua falta, não estão verificados todos os pressupostos indispensáveis para que a punição possa desencadear-se.Com efeito, «em vez de dizer-se que os pressupostos de punibilidade desencadeiam sem mais a punição, melhor se dirá que, uma vez eles verificados, se perfecciona o Tatbestand (no sentido da Teoria Geral do Direito) que faz entrar em jogo a consequência jurídica (Rechtsfolge) e a sua doutrina autónoma».Em suma, com a não entrega à administração tributária da prestação tributária que o agente deduziu nos termos da lei e que estava obrigado a entregar, depois de decorridos 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação, não pode ser afirmada a dignidade penal do facto e, portanto, a punibilidade.A punibilidade do facto exige, ainda, que haja uma notificação do agente para, no prazo de 30 dias, pagar a prestação tributária, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, e que o agente, nesse prazo, não proceda ao pagamento para que foi notificado.Como ela não se verifica nos processos pendentes, a aplicação da lei nova tem como inevitável consequência o reconhecimento da descriminalização do facto.Do que se trata, portanto, é da aplicação do n.º 2 do artigo 2.º do Código Penal.Não estamos perante uma sucessão de leis penais stricto sensu, a resolver segundo o n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal.O facto não é punível tanto pela lei antiga como pela lei nova.Por isso, proceder-se, agora, à notificação do agente para, em 30 dias, pagar a prestação comunicada, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável mais não traduz do que uma aplicação retroactiva in malem partem, absolutamente proibida”.Nada mais se pode acrescentar a esta excelente fundamentação.DECISÃO:Termos em que se nega provimento ao recurso, mantendo e confirmando o douto despacho recorrido.Sem tributação.Porto, 24 de Outubro de 2007
Francisco Marcolino de Jesus
Ângelo Augusto Brandão MoraisJosé Carlos Borges Martins
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Era de esperar o acerto e a densidade descritiva ao nível dogmático do Sr. Juíz Desembargador Dr. Francisco Marcolino
O sumário no site da DGSI é o contrário do decidido.
Prepara-se Acordão de Fixação de Jurisprudência..