24 de julho de 2007

ainda o crime de abuso de confiança fiscal

No .º juízo do Tribunal Judicial da comarca de Penafiel, os arguidos B………., C………. e D………., Lda foram submetidos a julgamento sob a acusação da prática de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo artº 24º, nº 1, do DL nº 20-A/90, de 15 de Janeiro.Na audiência, o senhor juiz, considerando que, com a entrada em vigor da norma da alínea b) do nº 4 do artº 105º do RGIT, introduzida pela Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro, os arguidos deixaram de poder ser perseguidos criminalmente pelos factos imputados, por ausência de uma condição de procedibilidade, determinou o arquivamento do processo.Inconformado, o MP interpôs recurso, sustentando, em síntese, na sua motivação:-Entre a versão do artº 105º do RGIT antes das alterações introduzidas pela Lei nº 53-A/2006 e a posterior existe uma continuidade típica, não se estando, pois, perante qualquer despenalização.-O que há é uma sucessão de leis penais, devendo aplicar-se a lei nova, na medida em que contemplando uma causa de exclusão da punibilidade não prevista na lei anterior, é mais favorável ao arguido.-A aplicação da lei nova passa pela concessão ao arguido da oportunidade de accionar aquela causa de exclusão da punibilidade.-Deve, assim, revogar-se a decisão recorrida.O recurso foi admitido.Não houve resposta.Nesta instância, a senhora procuradora-geral-adjunta foi de parecer que o recurso merece provimento.Foi cumprido o artº 417º, nº 2, do CPP, nada tendo sido dito.Tiveram lugar os vistos legais.Cumpre decidir.Fundamentação:Os factos imputados aos arguidos ocorreram na vigência do RJIFNA, aprovado pelo DL nº 20-A/90, com as alterações introduzidas pelo DL nº 394/93, de 24 de Novembro, lei que só não será aplicável se outra posterior consagrar regime concretamente mais favorável ao arguido – artº 2º do CP.Posteriormente, entrou em vigor a Lei nº 15/2001, de 5 de Junho que, além do mais que aqui não importa, foi alterada pela Lei nº 53-A/2006.Na versão anterior, a Lei nº 15/2001 dispunha no seu artº 105º:1 – Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.2 – Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.3 – (...).4 – Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.5 – (...).6 – Se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder € 2000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária.7 – (...).Relativamente a este preceito, a Lei nº 53-A/2006 limitou-se a alterar o nº 4, que passou a ter a seguinte redacção:4 – Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.Na decisão recorrida raciocinou-se assim: A alínea b) consagra «uma verdadeira condição de procedibilidade ou de instauração do procedimento criminal», sendo que, não estando verificada, o agente não pode ser perseguido criminalmente. Na falta da notificação agora prevista, estamos no âmbito do direito de mera ordenação social, nos termos do artº 114º, nº 1, do RGIT. E a notificação agora prevista não deve ser efectuada pelo tribunal, pois «insere-se no âmbito das relações entre o Fisco e um contribuinte concreto, não cabendo aos tribunais imiscuir-se nessa dinâmica própria», e não se vê que «o nosso ordenamento processual consinta que os processos sejam devolvidos ao órgão da administração fiscal para que este faça a notificação, ficando, até que a notificação seja feita, suspensos». Na falta da notificação, estamos perante uma contra-ordenação nos termos do artº 114º, nº 1, do RGIT, não tendo o tribunal competência para conhecer dela.Na conclusão desse raciocínio, ordenou-se o arquivamento dos autos.Mas, não se vê como a ausência de uma condição de procedibilidade, de um pressuposto processual, pode transformar um crime numa contra-ordenação. Uma tal ausência apenas poderia ter o efeito de impedir a instauração do procedimento. E, no caso, na altura da instauração do procedimento criminal essa condição, seja ela de procedibilidade ou mais do que isso, ainda não vigorava. Por tal motivo, a questão nunca se colocaria ao nível da procedibilidade, mas da prosseguibilidade do procedimento.E, se essa prosseguibilidade estiver dependente do não pagamento da prestação comunicada, dos juros respectivos e do valor da coima aplicável depois de notificação para o efeito, nada impede que seja o tribunal a fazer essa notificação. A razão invocada na decisão recorrida de que isso «se insere no âmbito das relações entre o Fisco e o contribuinte», além de nada explicar, não é rigorosa, na medida em que já não estamos no plano das meras relações entre a administração fiscal e o contribuinte, mas no âmbito de um processo penal, cujo prosseguimento, na perspectiva da decisão sob recurso, depende da referida notificação.Também não é procedente o fundamento indicado para não remeter o processo à administração fiscal para o efeito de a notificação ser ali feita. Na verdade, não é correcto dizer-se que essa remessa representaria uma suspensão do processo, não consentida pelo artº 7º do CPP, pois os autos seriam remetidos para a prática de acto processual, e a prática de um acto processual, ainda que fora do tribunal, não traduz qualquer suspensão do processo.Não é, assim, pelas razões aduzidas na decisão recorrida que se está perante a descriminalização dos factos imputados aos arguidos.Ainda que estivesse, e esses factos configurassem agora apenas uma contra-ordenação, não seria correcto o entendimento de que o tribunal não tinha competência para a apreciar, visto a norma do artº 33º do DL nº 433/82, de 27 de Outubro («O processamento das contra-ordenações e a aplicação das coimas e das sanções acessórias competem às autoridades administrativas, ressalvadas as especialidades previstas no presente diploma», na qual o tribunal recorrido se baseou neste ponto, cede perante a disposição do artº 77º, nº 1, do mesmo diploma («O tribunal poderá apreciar como contra-ordenação uma infracção acusada como crime»), disposição esta que constitui uma das «especialidades» além ressalvadas.Mas, se não há despenalização pelas razões invocadas na decisão recorrida, vejamos se ela ocorre por outros motivos, como já se decidiu (cfr. acórdãos desta Relação de 06/06/2007, proferido no procº nº 0644055, em www.dgsi.pt, e de 27/06/2007 e 18/06/2007 proferidos, respectivamente, nos processos nºs 38/07 e 2158/07 da 4ª secção).
O nº 4 do artº 105º do RGIT, na versão actual, como se viu, diz que os factos dos nºs 1, 2 e 3 só são puníveis se-tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal para a entrega da prestação;-a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.A primeira exigência, que anteriormente preenchia todo o nº 4, tem sido maioritariamente considerada como condição objectiva de punibilidade (cfr., por exemplo, Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, 2ª edição, páginas 177 e 179; e Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, 2ª edição, página 645). Susana Aires de Sousa, em Os crimes Fiscais, 2006, página 136, considera que se trata de «um pressuposto de punibilidade que corresponde, na acepção tradicional, a uma causa de exclusão da punição». Também Costa Andrade, em anotação ao acórdão do Tribunal Constitucional nº 54/04, publicada na RLJ, nºs 3931 e 3932, páginas 307 a 325, situa a questão no plano da punibilidade: «Do ponto de vista material, não subsiste hoje qualquer diferença entre o crime e a contra-ordenação (...). Num caso e noutro, o que se incrimina é a mera mora, independentemente de o ilícito criminal só ser punível, se decorrerem mais de 90 dias (...) sobre o termo do prazo legal da prestação. Na verdade, como hoje tende a sustentar-se, a punibilidade confronta a arquitectura do crime com uma nova e autónoma categoria, a acrescer ao ilícito é à culpa. (...) De qualquer forma, a comprovada não-punibilidade de um facto em nada contende com a existência e subsistência do ilícito típico e da culpa. Que, por isso, podem em concreto existir, independentemente da punibilidade do facto. É o que nos parece ser a situação do ilícito criminal – o mesmo podendo adiantar-se para a culpa – do abuso de confiança do artigo 105º do RGIT. Que existirá a partir do primeiro momento de mora. Apesar do facto só ser punível depois de decorridos 90 dias».No domínio do RJIFNA, logo na versão do DL nº 20-A/90, também se exigia, no nº 5 do artº 24º, o decurso do período de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação tributária, mas para a «instauração do procedimento criminal», norma que, na revisão operada pelo DL nº 394/93, se manteve, agora no nº 6 do mesmo preceito. Tratava-se portanto de uma condição de procedibilidade.No RGIT, a exigência do decurso de mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação tem a ver com a necessidade de distinguir entre o crime de abuso de confiança fiscal e a contra-ordenação prevista no artº 114º, nº 1. Ambos se preenchem com a mera não entrega da prestação tributária deduzida nos termos da lei; como, de acordo com esta última norma, a não entrega pelo período até 90 dias da prestação constitui mera contra-ordenação, a exigência do decurso de mais de 90 dias prevista no nº 4 do artº 105º significa que a não entrega da prestação tributária só será punida como crime se for por período superior a 90 dias. A exigência agora prevista na alínea b) do nº 4 do artº 105º também vem sendo entendida como condição objectiva de punibilidade (cfr., por exemplo, Isabel Marques da Silva, obra citada, página 180; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 07/02/2007 no processo nº 4086/06 da 3ª secção; acórdãos desta Relação de 06/06/2007, proferido no procº nº 0644055, em www.dgsi.pt, e de 27/06/2007 e 18/06/2007 proferidos, respectivamente, nos processos nºs 38/07 e 2158/07 da 4ª secção; Ricardo Sá Fernandes, em artigo publicado no jornal “Sol”, edição de 24/03/2007, página 27).Figueiredo Dias, expondo a sua teoria sobre os pressupostos de punibilidade, nos quais se incluem as condições objectivas de punibilidade e as causas de exclusão da pena, diz que se trata de «um conjunto de pressupostos que, se bem que se não liguem nem à ilicitude, nem à culpa, todavia decidem ainda da punibilidade do facto», sendo, assim, a punibilidade uma categoria que acresce ao ilícito e à culpa na constituição do conceito de crime.Depois de enunciar que «a ideia político-criminal e dogmática básica que dentro da categoria da punibilidade actua e lhe oferece unidade e consistência (...) é a dignidade penal», explica: «o facto ilícito-típico e culposo é também, em regra, facto digno de pena», podendo, porém, «suceder excepcionalmente que o não seja, se nele se não verificarem ainda pressupostos de punibilidade; pressupostos que têm que ver directamente com a dignidade penal do facto, com exigências de prevenção, geral e especial, que nele radicam mas não esgotam o seu significado no tipo de ilícito ou no tipo de culpa» (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, páginas 617 e seguintes).No relatório do Orçamento de Estado para 2007 justificou-se assim a introdução da norma da alínea b) do nº 4 do artº 105º do RGIT:«A entrega da prestação tributária (retenções de IR/Selo e IVA) está actualmente associada à obrigação de apresentação de uma declaração de liquidação/pagamento. A falta de entrega da prestação tributária pode estar associada ao incumprimento declarativo ou decorrer simplesmente da falta de pagamento do imposto liquidado na referida declaração. Quando a não entrega da prestação tributária está associada à falta declarativa existe uma clara intenção de ocultação dos factos tributários à administração fiscal. O mesmo não se poderá dizer, quando a não entrega da dívida é participada à administração através da correspondente declaração, que não vem acompanhada do correspondente meio de pagamento, mas que lhe permite desencadear de imediato o processo de cobrança coerciva. Tratando-se de diferentes condutas, com diferentes consequências na gestão do imposto, devem, portanto, ser valoradas criminalmente de forma diferente. Neste sentido, não deve ser criminalizada a conduta dos sujeitos passivos que, tendo cumprido as suas obrigações declarativas, regularizem a situação tributária em prazo a conceder, evitando-se assim a “proliferação” de inquéritos por crime de abuso de confiança fiscal que, actualmente, acabam por ser arquivados por decisão do Ministério Público na sequência do pagamento do imposto».É da dignidade penal do facto que aqui se fala: a falta de entrega da prestação tributária é muito menos grave se esta tiver sido comunicada à administração fiscal, porque «permite desencadear de imediato o processo de cobrança coerciva», devendo por isso ter tratamento mais favorável que os casos em que há «ocultação dos factos tributários à administração fiscal», tratamento mais favorável que consiste em não haver punição do facto como crime, se o pagamento, com os referidos acréscimos, for efectuado em certo prazo após notificação para o efeito. É nesse sentido de não punição do facto como crime que deve ser entendida a afirmação de que «não deve ser criminalizada a conduta dos sujeitos passivos que, tendo cumprido as suas obrigações declarativas, regularizem a situação tributária em prazo a conceder». Considerou o legislador que em tais casos, havendo pagamento nos termos indicados, o facto não exige punição do ponto de vista da prevenção, geral e especial. É a isto que, usando as palavras de Figueiredo Dias, «deve precisamente chamar-se a falta de dignidade penal do facto».Será, assim, um pressuposto de punibilidade que se prevê na alínea b) do nº 4 do artº 105º do RGIT: O facto ilícito típico, que já está completamente preenchido, só é susceptível de punição se não ocorrer o referido pagamento, o que equivale a dizer que, existindo esse pagamento, fica excluída a punição.Mas, esse pressuposto não terá a natureza de uma condição objectiva de punibilidade.
Como parece ser pacífico, as condições objectivas de punibilidade são, além do mais, acontecimentos independentes da vontade do autor do facto.Exemplos de condições objectivas de punibilidade são: a morte ou a ofensa à integridade física grave no crime de participação em rixa do artº 151º do CP (Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricence do Código Penal, Tomo I, páginas 231 e 232); o reconhecimento judicial da situação de insolvência no crime de insolvência dolosa do artº 227º (Pedro Caeiro, Comentário, Tomo II, página 425); a prática de um facto ilícito típico no crime do artº 295º (Taipa de Carvalho, Comentário, Tomo II, páginas 1112- 1115); as previstas nas alíneas a) e b) do artº 324º (Conceição Ferreira da Cunha, Comentário, Tomo III, página 175). E não é disso que se trata aqui. Com efeito, o pressuposto de punibilidade do facto é, no caso, o não pagamento da prestação comunicada à administração tributária, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito, e esse não pagamento está dependente da vontade do devedor; é um facto que não está fora do seu controlo.Ao estabelecer-se na alínea b) do nº 4 do artº 105º do RGIT que os factos dos nºs 1, 2 e 3 só são puníveis se a prestação tributária comunicada através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito, quer-se significar, como se disse, que o pagamento, com os acréscimos, pondo termo ao prejuízo patrimonial do Estado, que é o que de mais essencial se visa proteger com a incriminação, retira dignidade penal ao facto e, por via disso, exclui a punição.Parece, assim, poder afirmar-se que o pagamento previsto naquela alínea b) constitui uma causa de exclusão da punição. Trata-se de mais uma possibilidade dada ao devedor tributário que, tendo cumprido a obrigação declarativa, falhou na obrigação de entrega da prestação tributária, de pôr termo ao prejuízo patrimonial causado ao Estado com a sua omissão, em troca da não punição. Uma causa de exclusão da punição que até tem uma vertente adjectiva, na medida em que, para o seu accionamento, se prevê uma actividade processual – a notificação do sujeito passivo da obrigação tributária.Falta agora ver que consequências devem ser tiradas da entrada em vigor da norma da alínea b) do nº 4 do artº 105º relativamente aos processos que já se encontravam pendentes em tribunal à data do seu início de vigência e nos quais, portanto, não foi efectuada a notificação agora prevista, como é o caso deste.Essa norma em nada alterou a estrutura do crime de abuso de confiança fiscal. É certo que introduz alterações na questão da punibilidade. E em certas situações alterações legislativas a esse nível têm efeito descriminalizador.Por exemplo, se em certo momento vigorasse uma lei que criminalizava a simples participação em rixa e posteriormente entrasse em vigor outra que, como no caso do artº 151º do CP, passasse a exigir, como condição objectiva de punibilidade, que da rixa resultasse a morte ou ofensa à integridade física grave de alguém, não poderíamos deixar de concluir que a rixa simples fora descriminalizada. Mas, o caso que temos para solucionar é substancialmente diverso.Efectivamente, a nova versão da lei não operou uma restrição da punibilidade por acrescentamento de elementos que levem a que só situações mais graves que as abrangidas pela lei anterior sejam puníveis. Pelo contrário, valoriza um elemento que, concretizando uma circunstância excludente da punição, é favorável ao agente. É certo que para tanto se exige dele um determinado comportamento, mas um comportamento que já a lei antiga lhe impunha.A lei nova não introduziu qualquer elemento verdadeiramente novo do qual resulte um encurtamento do campo de incidência do crime de abuso de confiança fiscal. Passou a fazer depender a punição de um não pagamento, mas um não pagamento era precisamente o que já concretizava o ilícito no domínio da lei anterior. Qualitativamente nada há de novo. Se o pagamento de que depende a não punição é agora mais oneroso, e não o é muito, isso é justificado pela maior mora.Enquanto naquele exemplo estaríamos perante uma conduta – a participação em rixa simples – que, sendo ilícita e, por isso, punível, no domínio da lei antiga, deixou de o ser à face da lei nova, no caso presente não houve qualquer alteração a esse nível: a falta de regularização da situação fiscal do agente era ilícita e punível no domínio da lei anterior e continua a sê-lo à luz da lei nova.Vale aqui a lição de Figueiredo Dias: «Na verdade, só se pode falar de descriminalização – ou, nas palavras do artigo 2º, nº 2, do CP, da “eliminação do facto punível (...) do número de infracções (...)” – quando a lei nova passe a entender como lícita (ou, pelo menos, como “indiferente para o direito penal”) uma conduta que, de acordo com a legislação vigente ao tempo da respectiva prática, se qualificava de ilícita e, portanto, se considerava punível.(...) está em causa, tão-só, a questão de saber se a concreta conduta, considerada criminosa pela lei antiga, continua a constituir um ilícito punível nos quadros da lei nova. Desde que se verifique o pressuposto da dupla incriminação, pelas leis antiga e nova, do concreto comportamento (com referência ao mesmo bem jurídico) deixa de ter aplicação o disposto no artigo 2º, nº 2, do CP» (CJ, 1992, página 71 e 72).Da nova versão do artº 105º do RGIT não resultou, assim, a descriminalização dos factos ocorridos anteriormente em que não houve o pagamento agora exigido. Essa conclusão sai reforçada se se tiver em atenção que o fundamento substancial da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, nomeadamente da lei descriminalizadora, decorre do princípio da necessidade das penas ou da máxima restrição das penas, segundo o qual a pena só é legítima enquanto for necessária para a protecção de bens jurídicos. É nesse sentido que o Tribunal Constitucional vem decidindo:«Resulta deste princípio a asserção de que a legitimidade das penas criminais depende da sua necessidade, adequação e proporcionalidade, em sentido estrito, para a protecção de bens ou interesses constitucionalmente tutelados; e o seu valor assenta na verificação de que qualquer criminalização e respectiva punição (...) determina a restrição de direitos, liberdades e garantias das pessoas (...). Ora, tal restrição só pode justificar-se, nos termos do nº 2 do artigo 18º, quando se mostre necessária para a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.Pode afirmar-se, assim, que a garantia da aplicação da lei penal mais favorável se limita a exprimir, ou a traduzir, na matéria dos limites temporais da aplicação da lei penal, o princípio da necessidade das penas. Na verdade, se, em momento posterior à prática do facto, a pena se revela desnecessária, torna-se constitucionalmente ilegítima» (cfr. acórdãos nºs 169/2002, publicado no DR, II série, de 16/05/2002, 572/2003, publicado no DR, II série, de 17/02/2004, e 677/98, citado nos dois anteriores). No caso, o legislador considerou que a pena é desnecessária, mas apenas se for cumprida uma condição, que está na mão do agente cumprir: a regularização da sua situação fiscal. Só nesse caso a pena se torna desnecessária.Em conclusão, o caso tem de solucionar-se à luz do nº 4 do artº 2º do CP, sendo evidente que nesta fase a lei nova é mais favorável aos arguidos, na medida em que prevê uma possibilidade de afastarem a punição. A notificação para esse efeito é o passo processual que deve seguir-se; seja pelo tribunal, seja pela administração tributária. Nenhum obstáculo legal existe à adopção de qualquer uma dessas duas vias. Não pode, pois, manter-se a decisão recorrida.Decisão:Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação, no provimento do recurso, em revogar a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra, no pressuposto de que a introdução da norma da alínea b) do nº 4 do artº 105º do RGIT não teve o efeito de descriminalizar os factos imputados aos arguidos, a quem deve ser feita a notificação ali prevista.Sem custas.Porto, 11 de Julho de 2007 Manuel Joaquim Braz Luís Dias André da Silva Ângelo Augusto Brandão Morais
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Não explica o acordão a razão de ser da aplicação de lei mais favorável. Na participação em rixa a questão não tem a liquidez que se assinala (cfr. Costa Pinto, L.Amicorum Figueiredo Dias). Por outro lado, sendo como é na discursividade própria do acordão como condição objectiva de punibilidade e se afirma "independente da vontade do autor do facto", como aferir que a notificação após a omissão ser independente da vontade do sujeito passivo?

4 de julho de 2007

prazo de recurso final no direito contra-ordenacional

Foi relatado o Ac. RC de 30-5-2007, rel. Ribeiro Martins, www.dgsi.pt:
1- A apresentação do recurso suscita a questão prévia de se saber se o recorrente deve ou não deve pagar multa devida por interposição do recurso em prazo suplementar [ o referido nos art.ºs 107º/5 do CPP e 145º/5 do Código de Processo Civil].A decisão judicial é de 18.1.2007, data da sua leitura e depósito ( cfr. fls. 603/604)A arguida e o seu mandatário foram dela notificados por carta registada expedida a 19/1/2007 ( cfr. fls. 605/606) , pelo que presumidamente as notificações são de 22/1/2007.A motivação do recurso foi remetida ao tribunal a 6/2/2007 (cfr. fls. 643).2.1- O art.º 74º/1 do DL. n.º 433/82, de 27/10 estatui que “ O recurso deve ser interposto no prazo de 10 dias a partir da sentença ou do despacho, ou da sua notificação ao arguido , caso a decisão tenha sido proferida sem a presença deste”.O n.º4 do artigo 74º do DL. n.º 433/82 estatui que “O recurso seguirá a tramitação do recurso em processo penal, tendo em conta as especialidades que resultam deste diploma”.Também o art.º 41º/1 do mesmo diploma estatui que “Sempre que o contrário não resultar deste diploma são aplicáveis devidamente adaptados os preceitos reguladores do processo criminal”.2.2- Perante estes dispositivos temos por líquido que no domínio contraordenacional é de 10 dias o prazo para interpor recurso das decisões judiciais que confirmem, revoguem ou alterem as decisões administrativas.E porque o recurso segue a tramitação do processo penal devidamente adaptado tendo em conta as especialidades do citado diploma, o prazo de resposta ao recurso é também de 10 dias [ e não o de 15 dias referido no art.º 413º/1 do CPP].É deste modo que o regime do Código de Processo Penal se aplica «devidamente adaptado» ao regime contraordenacional. Isto é, não é a estatuição do DL. n.º 433/82 que cede ao regime do recurso em processo penal; antes é este que se aplicará no âmbito daquele devidamente adaptado às suas especificidades. Assim, não é por o CPP consagrar um prazo de 15 dias para a resposta dos sujeitos processuais afectados pelo recurso que tem de entender-se, contra disposição expressa da lei, que o prazo para a sua interposição é de 15 dias. Antes, deve entender-se que o prazo de resposta ao mesmo é que é de 10 dias. O entendimento que perfilhamos [ que o prazo de interposição do recurso, tal como o de resposta ao mesmo, é de 10 dias], além de ser o conforme com o sistema expressamente instituído pelo DL. n.º 433/82 não sofre da inconstitucionalidade afirmada no Ac n.º27/2006 do Tribunal Constitucional publicado no DR. I-A de 3/3/2006.Como já se referiu em Ac. desta Relação [proferido no processo 606/05.5TBGRD, relatado pelo Des. Abílio Ramalho e que subiu ao TC [1] , a norma ínsita no art.º 74º/1 do RGCO, porque integrada num regime jurídico especial é também ela uma norma especial em relação à norma do art.º 411º/1 do CPP.Não há assim que violentar a norma escrita constante do art.º 74º/1 do DL. n.º 433/82 para a adaptar ao art.º 411/1 do CPP. Antes, de acordo com o seu n.º4 e o n.º1 do art.º 41º, há que adaptar ao caso de recurso em processo contraordenacional o prazo a que se reporta o art.º 413º/ do CPP para resposta ao mesmo .Esta interpretação é a conforme com os art.ºs 41/1 e 74/4 do DL. n.º 433/82, adequa-se aos propósitos de celeridade e eficácia próprios do regime contraordenacional e não belisca com a doutrina obrigatória consagrada no Ac. 27/2006 do Tribunal Constitucional.A nosso ver, a inconstitucionalidade afirmada pelo TC teve o mérito de alertar as instâncias comuns para a complacência com que, por vezes, se vinham aceitando respostas tardias aos recursos interpostos.2.3- Também já se defendeu que o prazo de recurso em processo contraordenacional era o de 15 dias com base no art.º 6º/1 alínea c) do DL. n.º 329-A/95.Mas também aqui sem razão, pois que o regime geral dos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo são da competência relativa da Assembleia da República ( cfr. art.º168º/1, alíneas c) e d) e art.º 165º/1, al. c) e d) da CRP, respectivamente antes e depois da revisão constitucional de 1997). O DL. 329-A/95 tem na sua génese a autorização legislativa da Lei n.º 33/95 de 18/8. Porém, esta autorização foi necessária por algumas das suas inovações interferirem com a organização e competência dos tribunais (cfr. art.ºs 168º/1, al. q) do CRP na versão vigente em 1995 e a referida Lei de autorização legislativa). Essa Lei n.º33/95 não previu alterações nem no processo penal nem no processo referente aos ilícitos de mera ordenação social. Daqui a necessidade de no art.º6º do DL. 329-A/95 -, que alterou a contagem dos prazos em quaisquer diplomas a que fosse subsidiariamente aplicável o art.º 144º do Código de Processo Civil -, se introduzir o que foi o seu n.º3 o qual ressalvava a anterior redacção do C.P.C. para os efeitos da remissão que para ele era feita pelo art.º 104º do Código de Processo Penal . Sem essa ressalva o art.º 6º/1 do DL. 329-A/95 seria inconstitucional enquanto aplicável no âmbito do processo penal e no do processo por contra-ordenações.Para obviar ao dessincronismo assim gerado veio dispor a Lei n.º59/98 de 25/8 [cujo art.º 8º, alínea a) revogou a ressalva do n.º3 do art.º6º do DL. 329-A/95, após adoptar a contagem dos prazos no processo penal à nova redacção do Código de Processo Civil] . Mas deixou-se até hoje intocado o prazo estabelecido no art.º 74 do DL. n.º 433/82 de 27.10, pelo que se mantém-se inalterado o referido prazo.Estender ao processo das contra-ordenações o sistema de contagem referido no art.º 6º do DL. 329-A/95 seria fazer uma interpretação que feriria de inconstitucionalidade orgânica o mencionado segmento legal do referido art.º 6º, por falta de autorização legislativa da Assembleia da República.3- Voltando ao caso em apreço, as notificações da sentença ao Ex.mo mandatário da arguida e a esta são presumidamente de 22/1/07 ( art.º 113/2 do CPP), pelo que o prazo normal do recurso [ de 10 dias ] se esgotou a 1/2/2007.Por força do art.º 107º/5 do CPP, que remete para a estatuição do art.º 145º/5 do CPC, esse prazo pode ser acrescido dum outro suplementar de 3 dias úteis subsequentes, mas a sua validade está dependente do pagamento da multa aí referida.Tal prazo acrescido foi até 6/2/2007 ( já que 3 e 4 foram , respectivamente, sábado e domingo). Sendo a remessa da motivação do recurso dessa data, deve a recorrente pagar a referida multa caso pretenda ver não rejeitado o recurso .
III-Decisão –Termos em que se decide devolver os autos à 1ª instância onde deve ser paga a referida multa com vista à não rejeição do recurso com o fundamento em apresentação tardia .
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Merece a nossa concordância. Na verdade, o direito contra-ordenacional não pode assemelhar-se sem mais ao processo penal. A ser assim, estar-se-ia em pôr em causa todo o espírito que adveio aquando da criação deste ramo do direito.