15 de fevereiro de 2012

Crime de falsidade de testemunho

DOUTRINA: cfr. “Inverdades e consequências: considerações em favor de uma concepção subjectiva da falsidade de testemunho. | Anotação aos acórdãos da Relação do Porto de 30-01-2008 e da Relação de Guimarães de 29-06-2009” - Nuno Brandão, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 20 nº 3, Julho-Setembro de 2010

JURISPRUDÊNCIA (acórdão TRE de 7-2-2012)
Posto isto, a questão em discussão nestes autos consiste em saber se, prestando uma testemunha duas declarações contraditórias entre si, em duas distintas fases do processo, não se apurando em qual delas mentiu, deve ainda assim ser condenado pela prática do crime de falsidade de testemunho ou, pelo contrário, deve ser absolvido.
Diz o recorrente (conclusão 15ª) que “não se encontra fixada a verdade objectiva e, sem se saber qual é essa verdade, não se pode afirmar a falsidade do depoimento do recorrente, prestado na qualidade de testemunha, num ou noutro momento”.
Trata-se de entendimento com algum acolhimento jurisprudencial, mesmo neste Tribunal da Relação de Évora [2]. Do qual, contudo, discordamos, sempre ressalvado o devido respeito.
Nos termos do disposto no artº 360º, nº 1 do Cod. Penal “quem, como testemunha (…) perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento (…) prestar depoimento (…) falso(s), é punido com pena de prisão de seis meses a três anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias”. O recorrente prestou, em sede de inquérito e em sede de julgamento, dois depoimentos contraditórios entre si: no primeiro afirmou saber que a droga vendida por um tal “Paulinho” era do “Bombas”, que vendia 15 pacotes por dia e que entregava ao “Bombas” 100 ou 110 euros, ficando com o resto para consumo próprio; no segundo afirmou não saber de quem era a droga vendida pelo tal Paulinho e que apenas por uma vez viu o Bombas entregar-lhe 5 pacote de heroína, não sabendo para que efeito. São, como é evidente, dois depoimentos contraditórios entre si. E aqui, uma de duas: ou ambos os depoimentos são falsos ou, pelo menos, um deles é falso. O que é manifestamente impossível, mesmo com recurso à melhor retórica, é afirmar que um depoimento é verdadeiro e o seu contrário também. Ora, elemento típico do crime de falsidade de testemunho é que alguém, numa das qualidades enunciadas no artº 360º, nº 1 do Cod. Penal, preste depoimento, apresente relatório, dê informações ou faça traduções falsos. Dúvidas não podem, pois, restar sobre a verificação desse elemento típico: no âmbito do processo de onde foi extraída a certidão que está na origem destes autos, o arguido prestou falso depoimento: ou em 25/9/2008, quando foi ouvido em sede de inquérito, ou em 12/5/2009, quando foi ouvido em sede de julgamento (ou, eventualmente, em ambas as ocasiões…). Saber em que momento processual foi produzido o falso testemunho é algo de absolutamente irrelevante, a não ser para efeitos prescricionais (que, no caso, atento o prazo de prescrição do procedimento criminal e as datas em que foram produzidas as declarações, é questão que não se coloca) [3]. Subscrevemos, por isso, sem qualquer hesitação, as considerações contidas no Ac. RP de 22/11/2006 (rel. Isabel Pais Martins), www.dgsi.pt: “A não fixação da data de consumação do crime não impõe nem a absolvição da recorrente, por apelo ao princípio in dubio pro reo, nem traduz uma qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, no sentido de tornar impossível um juízo seguro de condenação. O juízo seguro de condenação decorre da prova de que o recorrente, sujeito a um dever processual de verdade e de completude, prestou, em dois momentos processuais, depoimentos divergentes sobre a mesma realidade. O facto de o tribunal não ter logrado apurar a verdade objectiva, conhecida do recorrente (e, daí, não ter conseguido determinar em que momento foi cometida a falsidade) não prejudica uma convicção de certeza sobre a acção típica. A certeza sobre a data de consumação do crime não é um requisito indispensável ao preenchimento do tipo-de-ilícito. A incerteza sobre a data de consumação do crime só poderá relevar para certos efeitos jurídicos, v.g., de consideração de uma eventual prescrição do procedimento criminal ou de aplicação de uma hipotética lei de amnistia, devendo, para esses efeitos, a incerteza sobre a data de consumação sempre ser valorada a favor do recorrente, pela aceitação daquela que lhe seja mais favorável”. E neste mesmo sentido se pronunciaram, entre outros, os Acs. RP de 21/2/2007 (rel. Cravo Roxo) e de 30/1/2008 (rel. José Carreto), bem como os Acs. RC de 18/5/2011 (rel. Jorge Jacob) e de 28/9/2011 (rel. Paulo Guerra), todos in www.dgsi.pt.
A terminar: Não obstante opinião em contrário expressa no Ac. RP de 21/2/2007 supra referido, é nosso entendimento que vindo o arguido acusado pela prática do crime de falsidade de testemunho agravado (nº 3 do artº 360º do CP) e acabando condenado pela prática do mesmo crime na sua forma simples (nº 1 do mesmo preceito), precisamente por se não ter provado a circunstância agravativa (prática do facto após prestação de juramento), não havia qualquer necessidade de, no caso, dar cumprimento ao estatuído no nº 3 do artº 358º do CPP (contrariamente ao que afirma o recorrente na sua motivação de recurso, se bem que o não reafirme nas suas conclusões). É que, como bem se acentua no Ac. STJ de 7/11/2002 (rel. Simas Santos), www.dgsi.pt, “resulta da jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça e da Doutrina (…), se a alteração resulta da imputação de um crime simples, ou «menos agravado», quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime, mas em forma mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravativo inicialmente imputado, não há qualquer alteração relevante para este efeito, pois que o arguido se defendeu em relação a todos os factos, embora venha a ser condenado por diferente crime (mas consumido pela acusação ou pronúncia). Ou seja, o arguido defendeu-se em relação a todos elementos de facto e normativos que lhe eram imputados em julgamento, pelo que nada havia a notificar, toda a vez que se verificou não uma adição de elementos, mas uma subtracção» [4].
Évora, 7 de Fevereiro de 2012 (processado e revisto pelo relator)
Sénio Manuel dos Reis Alves

__________________________________________________
[1] Obviamente, sem prejuízo das questões que oficiosamente importa conhecer, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do STJ, de 19/10/1995, DR 1ª Série, de 28/12/1995).

[2] Cfr. os Acs. RE de 15/4/2008, de 3/6/2008 e de 8/4/2010; no mesmo sentido, cfr. Ac. RG de 29/6/2009, RP de 5/7/2006 e de 14/9/2011, todos in www.dgsi.pt.

[3] Outra situação em que, eventualmente, a determinação do momento em que é produzido o falso testemunho assume relevância ocorre quando a primeira declaração é produzida num momento em que a conduta em causa não era penalmente sancionada e já o é no momento em que é produzida a segunda declaração. É questão que igualmente se não coloca nestes autos. Numa e noutra situação, porém, sempre seria, nesses casos, de considerar a data que melhor protegesse os interesses do arguido, na contemplação de um princípio geral de in dubio pro reo que se não resuma à fixação da matéria provada e não provada.

[4] No mesmo sentido, cfr. Ac. RC de 14/9/2011 (rel. Paulo Guerra), www.dgsi.pt. “