21 de janeiro de 2007

Abuso de Confiança Fiscal: despenalização ou sucessão de leis penais?

Foi dado o seguinte despacho no 2º juízo de Competência Especializada Criminal do T.J. de Leiria:
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Nos presentes autos encontra(m)-se o(s) arguido(s) acusado(s) da prática de crime(s) de abuso de confiança fiscal. No dia 1 de Janeiro de 2007, entrou em vigor a Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 2007. Tal diploma introduziu várias alterações ao Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, com as alterações introduzidas pela Lei nº 109-B/2001, de 27 de Dezembro). Uma das alterações introduzidas é a implementação de uma aparente condição de punibilidade( mediante o seu enquadramento formal, é pelo menos o que o legislado parece querer dizer) no que concerne ao crime de abuso de confiança fiscal tipificado no artigo 105.º do diploma já citado.
Assim, o artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, abreviadamente designado por RGIT, passou a ter seguinte redacção:
“Artigo 105.º
[…]
1 - […].
2 - […].
3 - […].
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração, não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
5 - […].
6 - […].
7 - […].”

Confrontando o regime anterior (RGIT) com aquele que entrou em vigor no transacto dia 1 de Janeiro para que se verifique um crime de abuso de confiança fiscal é sempre necessário, para além do decurso do prazo de 90 dias sobre o termo do prazo legal da entrega da prestação, existir o não pagamento na sequência de uma notificação para que o agente, em 30 dias, proceda ao pagamento da prestação comunicada à administração fiscal, acrescida de juros e o valor da coima aplicável.
Quid iuris relativamente aos processos pendentes ?
O legislador acrescentou aparentemente uma condição objectiva de punibilidade.
Ao formular uma condição objectiva de punibilidade, o legislador visa diminuir o espaço de incriminação, e sendo um “aliud” ao ilícito não se exigirá a imputação subjectiva, maxime o dolo e também a possibilidade de erro. Tratando-se de uma condição própria será restritiva da punibilidade do facto típico sendo estranha a considerações de conduta proibida. Por último, exige-se destas condições as mesmas exigências da lei penal, não fazendo parte, repete-se, do tipo de ilícito, mas do tipo garantia. Importa saber se estamos diante uma verdadeira condição objectiva de punibilidade ou não. A questão é de pertinência absoluta. Na realidade, e de acordo com o Prof. Taipa de Carvalho (apud “Sucessão de Leis Penais, 2ª ed., págs. 179 a 183), perante a redução de punibilidade por consideração do novo elemento adicionado, há que saber se o elemento é especializador, caso em que há despenalização, ou especificador, caso em que há verdadeira sucessão de leis penais. Ora, o A., acima identificado, é muito claro em erigir como critério de definição do elemento novo como especializador ou especificador, o erro (maxime p. 185). Isto é, sempre que o erro sobre o novo elemento não excluísse o dolo haveria que aplicar o disposto no art. 2º nº 4 do C.P., pois a conduta seria punível, aplicando-se a lei mais favorável, não havendo evidentemente despenalização.
Ora, qualificando a nova al. b) como condição objectiva de punibilidade, e de acordo com o significado que a dogmática maioritária dá a esta qualificação, i.e. é irrelevante a imputação subjectiva e assim o erro, impõe-se considerar a existência de uma verdadeira sucessão de leis penais, aplicando-se o regime descrito no nº 4 do art. 2º do C.P..
Será assim ? Ou estamos naquele campo em que a indagação da categoria da dignidade penal (e a categoria mais lata de pressuposto de punibilidade) toca nos conceitos de tipo-de-ilícito ou tipo-de-culpa, tendo com tais referentes categoriais autêntica simbiose. ?
No meu entendimento, e até agora consubstanciado no tempo curto ainda dado a reflectir, e no sólido confronto de reflexões havidas com colegas, e com apoio na pouca literatura nacional, penso que a questão é resolvida pura e simplesmente no ilícito.
Na verdade, no regime anteriormente vigente, o tipo de ilícito reconduzia-se a uma mora qualificada no tempo (90 dias), sendo a mora simples punida como contra-ordenação, ilícito de menor gravidade. Neste momento, o legislador adita uma circunstância que por referir-se ao agente, e não constituindo assim um “aliud” na punibilidade como parece a norma fazer crer, encontra-se no cerne da conduta proibida. Na verdade, não é o facto de o legislador afirmar que “só são puníveis se”que torna liquida a existência de uma condição objectiva de punibilidade. É antes a necessidade de o legislador pretender caracterizar uma determinada mora.
Assim, impõe-se agora que o agente não entregue à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar pelo prazo superior a 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação e desde que não tenha procedido ao pagamento da prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
Na verdade, o aditamento da al. b) criou um conjunto de vários de problemas que só o titular do bem jurídico poderá dilucidar na prática e para a representação e vontade do agente e assim motivar ao cumprimento da norma, concretizando outrossim a conduta proibida. Assim, quem é notificado ? A pessoa colectiva ? O gerente ? Qual ? E por outro lado, o próprio titular do bem jurídico terá que determinar o valor da coima. Por virtude de que contra-ordenação ? A do atraso da entrega da prestação até 90 dias ? Em que montante ? Há assim algo de novo no recorte operativo do comportamento proibido violador do bem jurídico património fiscal, precisamente o facto de a Administração Fiscal entrar em directo confronto com o eventual agente do crime. Não faz sentido pois uma interpretação, como a que a da sucessão de leis penais (art. 2º nº 4 do C.P.), parece oferecer e que seria ordenar a notificação dos arguidos para os termos da al. b) pelo simples facto de tal notificação não ser determinável. Assim que coima teria o arguido que pagar ? Que montante a fixar ? Quem a fixa ?
Em suma, o legislador até aqui criminalizou uma mora qualificada relativamente a um objecto material do crime, o imposto, atendendo aos fins deste. Agora, pretendeu estabelecer como crime uma mora específica e num contexto relacional qualificado.
Assim, verificando-se que os factos descritos na acusação se encontram despenalizados, julgo extinto o procedimento criminal.
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